Quinta-feira
à noite, no pequeno auditório de uma livraria, estou em uma roda com algumas
pessoas conhecidas e várias que vejo pela primeira vez, mais homens do que
mulheres. Já aconteceram alguns passos do que viemos fazer aqui e devo falar
sobre a questão que coloquei: dificuldade em colocar afeto na minha vida. Não
imaginava ter que falar, é claro, achava que outra questão fosse ser escolhida.
Como a vida parece ser o que acontece quando não controlamos nada, decido viver
a experiência como quem segura a respiração e se joga do penhasco torcendo
para entrar com jeito no mar lá embaixo. Há alguns gestos de cuidado que
devemos ter uns com os outros. Só podemos falar em primeira pessoa, nada de usar
você ou a gente. Não podemos interromper o outro. As pessoas podem entrar ou
sair, se quiserem. E não se contam segredos, nada que precise ser guardado por
alguém.
Falo
de uma reunião, conto como o que eu achava ter sido apenas uma fala incisiva foi
percebido por alguém que ouvia de longe como nervosismo. Isso fez com que me
desse conta de como uso raiva e agressividade.
Me perguntam que bicho eu seria. Um dragão, claro. Assustadores, mas também magníficos
em seu poder de manter os outros calados, em neutralizar a agressão antes mesmo
que ela aconteça, capazes de manter todos à distância. Alguém pergunta se tenho
orgulho do dragão. Sim, tenho, adoro o dragão. Sei que isso torna difícil mantê-lo
afastado. Descrevo um pouco minha família: filha única até quase
quatro anos, duas irmãs em menos de um ano. Conto sentir que me tornei a filha
do meu pai nesse momento, minhas irmãs ficaram com a mãe. Quando me perguntam o
que sentia, na época, respondo sem pensar: solidão.
É
uma experiência intensa responder a essas perguntas em público mas não sinto
vergonha. Há um silêncio, uma escuta no ar. Querem saber que bicho eu gostaria
de ser, no lugar do dragão. Um gato. Eles fazem o que querem, vão com as
pessoas de que gostam, e não há nada que possa fazê-los ser o que não são. Eles
sabem pedir carinho e afeto, melhor do que um cão. Em certo momento A. e M.
cantam “sei que você fez os seus castelos, e sonhou ser salva do dragão,
desilusão meu bem, quando acordou estava sem ninguém, sozinha.”
Sinto
uma imensa vontade de chorar, a música é perfeita, mas ainda não consigo ser
tão eu mesma assim, e o choro não sai. Vejo pelo canto do olho alguém enxugar
uma lágrima. Depois outros falam. Sobre um amor que também tinha um dragão.
Sobre um amor ter mandado o dragão embora. Sobre ter abandonado o dragão para
ter um amor. O amor aparece nas falas.
Para
terminar, as duas pessoas que conduziram a conversa agradecem a experiência com
carinho e desfazemos a roda. Os outros brincam comigo sobre o dragão, rimos. O
amigo me olha entre um pouco apreensivo e assustado, não sei se com minha
entrega inesperada, ou com o que falei. Mas não é hora para entender isso, há
muitas outras coisas para processar.
Lembro de um filme que assisti há
uns meses, zapeando na TV: As Sessões. Uma cena me marcou. A personagem de Helen Hunt vai se
converter ao judaísmo e antes disso precisa tomar um banho ritual nua, na
frente de uma mulher ligada à sinagoga. Ela desce os degraus da piscina e entra
na água com absoluta leveza, sem nenhum pudor pela exposição. A outra personagem
comenta que as mulheres jovens sempre têm dificuldade naquele momento. Algo
assim: é preciso coragem para se mostrar e dizer este é o corpo que Deus me
deu. Esta sou eu, diz a cena. E eu também digo: esta sou eu, inteira, nua.
Do caralho! Li todos os textos dos links que indicaste, mas este teu relato sintetiza e desvela a todos eles. 'Nua' é bonito por si, mas também amplamente revelador da consulta que te fiz a respeito de 'encontro de terapia comunitária'. Obrigado duplamente, Inês.
ResponderExcluirBom que gostou Heitor!
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