Mulher com taça de vinho e homens que morrem de frio

Tiradentes está cheia de turistas nesses dias de inverno, sou mais um deles. Em uma noite de sexta, hordas vagueiam pelos bares e restaurantes. Pode ser uma experiência horrível mas estou alegre, tudo parece cair bem. Começo assistindo a um espetáculo de bonecos para crianças – o Iu Tubo. Feitos de tubos de PVC, os bonecos me surpreendem pela quantidade de fios usados para manipulá-los. Tudo é bem infantil, o líder da companhia parece tão feliz que é impossível não entrar nessa frequência. Dou risada com a perseguição dos peixes, aplaudo, adoro o jeito maravilhado das crianças pequenas na minha frente. Espetáculo terminado, faço o tour com as crianças para ver os bonecos.
Depois decido tomar um vinho num minúsculo bar, na mesma rua. Entro, peço uma taça, converso um pouco com a garçonete no balcão. Sinto um prazer imenso em poder ser uma mulher sozinha, tomando uma taça de vinho em um bar. Lá de fora vem o som do músico de rua que toca um violoncelo. Sentado numa calçada alta de pedras, as pessoas se amontoam em volta dele. Nunca havia visto um músico de rua tocando esse instrumento. Reconheço o Bolero de Ravel, e um Bach. Vou até a calçada, taça na mão e um rapaz começa a conversar comigo. É músico também e diz que o violoncelista toca com alma. Conta uma experiência que foi quase mágica para ele. Tocando em uma cidade próxima uma música do Toninho Horta, abriu os olhos e o compositor estava na sua frente, assistindo ao show. Quase fechei os olhos novamente! Ele diz gostar de morar em Tiradentes, gostar do tempo que tem para a filha pequena. Percebo que os parâmetros dele não são os habituais quando ele me fala de Ibitipoca e de ter morado lá até que a grana que tinha economizado por anos acabor. O lugar é mágico, você tem que ir, os cristais de lá! Ele parece uma figura de um filme dos anos 20, a pele muito, muito branca, um boné de lã na cabeça e óculos de aro de metal.
Ele se despede, termino meu vinho, o músico do violoncelo para de tocar, olha para mim e sorri. Nos aproximamos, ele pergunta se trabalho com arte, se sou produtora, algo assim. Não, o máximo que faço é escrever um pouco! Deve ser isso, ele ri. Olho a pele dele, parece um chocolate com 80% de cacau meio franzida nos malares e me dou conta de que ele é muito mais velho do que eu havia pensado, de longe me parecia um homem jovem.  Ele fala de um projeto em algum lugar para montar uma biblioteca para quem não tem acesso a livros e diz querer ir no verão para Arraial d’Ajuda. Se tivesse que situá-lo em outro tempo, ele seria um saltimbanco, com seu cabelo no meio das costas, indo de cidade em cidade, na Idade Média. Nos despedimos e ele pergunta se pode me dar um abraço. Nos abraçamos e ele diz com carinho Axé!
Experiências assim acontecem nos outros dias. Converso longamente com o recepcionista do hotel, paro na rua quando vejo pelo portão aberto num muro um homem esculpindo um São Francisco em madeira. Pergunto se posso ver o que ele faz e ele diz que sim, parece contente por poder falar do trabalho. Conta que demora uns dois anos para terminar uma peça daquela, que a madeira é cedro porque é macia e amarga, os cupins não gostam. Fala de colecionadores, de críticos de arte, de precisar dinheiro para poder mandar as peças para exposições na Europa para as quais é convidado, de ter começado a esculpir criança, com o pai. Acho o São Francisco maravilhoso:  ajoelhado, ele ergue a cabeça para o céu de tal maneira que a barba é o ponto mais alto. Há êxtase e entrega na expressão de seu rosto. Wallace, o escultor, me diz que vai colocar uma caveira na base (a irmã morte) e uma borboleta na mão erguida (os irmãos animais, penso eu).
Como me parece fácil falar com todo mundo nessa cidade! As relações humanas fluem. Posso sentar no banco da praça e ler, parece natural aqui. Passo horas vivendo a rua, vivendo a cidade, sem precisar voltar para a pousada.
São Paulo, dias depois. Um homem morreu de frio na Teodoro Sampaio com Doutor Arnaldo. É tão perto da minha casa que não consigo deixar de pensar que é minha responsabilidade, era meu vizinho. Mas desconhecemos essa sensação de vizinhança, não sabemos quem são as pessoas à nossa volta, não falamos com desconhecidos. Mesmo no dia tão frio, não sei se eu pararia para perguntar se ele estava precisando de alguma coisa. São tantos morando na rua aqui por perto que se tornaram algo natural – um algo e não um alguém. Talvez eu perguntasse para o Rafa, um jovem com um ar meio perturbado que fica pelo pedaço e que o meu filho conhece. Às vezes ele me diz - não uso mais essa camiseta, mãe, acho que vou levar para o Rafa.
Um senhor forte, com um rosto saudável, está agachado na calçada da rua onde moro. Na cabeça um chapéu de cowboy, um ar de quem acabou de chegar em São Paulo, meio perdido. Passo com a sacola de compras e ele pede dinheiro para um café. Ando mais um pouco fuçando dentro da carteira e quando acho o dinheiro que procuro, volto e dou a ele que me olha muito surpreso. Digo, é, hoje está muito frio. Ele sorri. Na outra calçada por onde passei, o carrinho do catador está preso por uma corrente mas seu dono não está deitado na soleira da porta onde costuma dormir. Fico torcendo para que alguém tenha conseguido levá-lo para um abrigo.  Só agora, nesse momento, me dou conta de que falarmos uns com os outros, com os desconhecidos, com os estranhos, com todos, talvez seja a forma mais perfeita de se ocupar uma cidade.


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