Lúcio

 


Acordei sentindo falta de alegria gratuita, de farra, de festa, de ausência de grandes problemas. Faz tempo que não sei o que é isso, faz muito tempo que não sabemos o que é isso: um dia glorioso, daqueles que desliza de prazer em prazer, cheio de encontros com pessoas queridas, com comida gostosa, bebida naquele ponto certo que potencializa a alegria, muita música, dança, festa. Nos últimos tempo, conheço mais o acordar de madrugada e o coração disparar com alguma preocupação.

Mesmo assim, o café da manhã começa bem, comprei ontem um croissant de amêndoas que como com um café preto do meu grão favorito no momento, que dá um líquido com pouco amargor, bom de tomar. Converso com uma das minhas irmãs, vou vê-la mais tarde. Leio o jornal, procurando só coisas razoáveis, talvez descobrir algum livro ou uma entrevista boa com alguém. Meu celular toca e é G. com voz de choro. Meu coração dispara enquanto ela conta que o Lúcio, primo dela, morreu ontem à noite em Florianópolis, ela ainda não tem todas as informações, mas parece que ele estava numa festa e infartou. Minha primeira reação é quase um protesto: como assim, eu nunca mais vou dançar com o Lúcio? Na última grande festa em que ele estava, no final de 2019, eu ainda não dava conta de dançar, fazia poucos meses que eu tinha feito o transplante de medula, ainda cansava demais e tinha de ficar longe de multidões, então nem pude ir. Na época pensei: vou ficar boa e ainda vou dançar muito com o Lúcio. Para que entendam, ninguém, absolutamente ninguém que eu conheça dança como ele dançava. Em festas, a gente se organizava para todo mundo poder ir para os braços dele. Ele sabia fazer a gente deslizar, não havia hesitação, pisão no pé, dúvidas. Era uma das experiências mais prazerosas e raras que existem. Muita gente dança bem, mas não como o Lúcio. No meio do choro, eu e G. rimos, confusas, achamos muito surpreendente que ele estivesse em uma festa, quase como se um roteirista louco tivesse planejado a cena. Como assim? Como fazemos agora? Desligamos, ela vai ficar com a família, eu sigo estupidificada.

No mesmo instante, entram fotos no meu celular. Fotos de uma festa. Uma amiga que mora na Alemanha me manda fotos da festa de ontem, a primeira depois da pandemia, todos duplamente vacinados há tempos. Ela me liga, explico meu choque com essa mistura de perda e festa que hoje parece tomar tudo. Ela também perdeu alguém querido há uma semana, estamos numa situação parecida. Desligamos. A recorrência do tema festa parece uma provocação do Lúcio, tem que ser. 

Acho a foto do Lúcio de que gosto. Dançamos na república em que morei com amigas, era uma festa pequena, me lembro. Dancei horrores com ele, fiz caras e bocas. Ri como sempre ria quando dançávamos. Obrigada, Lúcio, por dar tanto prazer a tanta gente, obrigada por me ensinar tanto.


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