Dias de areia

Em um fim de tarde, o efeito dos dias luminosos desaparece e volta a sensação de dias de areia, aqueles em que ainda há alguma luz no ar, mas borrada pelos grãos, pelas nuvens um pouco melancólicas dos grandes desejos, os que não foram satisfeitos.
Lembro a lenda hinduísta em que um deus refaz a obra de Brahma para torná-la perfeita e descobre ter criado um mundo imóvel e morto. A ideia de que a perfeição não é desejável não chega a ser um consolo nos momentos em que queremos felicidade banal. Ao meu redor as vidas fluem, plenas das dores que fazem o mundo, a existência. Pareço ler um livro pelo qual sou obcecada: A dor, de Marguerite Duras. Há uma morte esperada, ainda assim muito sentida, alguém abandona um desejo ao descobrir que não tem força suficiente para torná-lo realidade, outros encaram doença ou o fim de um amor.
À espera de um espetáculo, ando pelas ruas do Bixiga. A escala das coisas é outra, de uma cidade infinitamente menor do que a de agora. Portinhas levam a cantinas, a botecos, a biroscas de doces antigos. Na esquina, um grupo de motoboys assiste em pé a um jogo de futebol, a pizzaria ainda sem movimento. Crianças andam pela rua com as avós atrás carregando sacolas. O ar cheira bem, uma mistura de lenha e pizza, o perfume de madeira lembrando algo ancestral, de quando comíamos em grandes grupos, e conversávamos.  
Indivíduos cada vez mais certos do que nos diferencia, talvez sigamos o movimento do universo em sua expansão e distanciamento. Sinto falta da tribo. O texto do psicanalista explica que quanto mais andamos em uma direção, mais temos saudades do seu oposto. Yin e yang desenharam os chineses há séculos.
Mais tarde alguém afirma que o único sentido da vida é aprender. Cumpro a regra a cada dia mas há um buraco que, às vezes, parece estar sobre um alicerce de areia a desabar. 

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