Noite

Sou das que adora dirigir, que vê prazer em trocar de marcha, que ama o momento solitário no carro, sem interferência externa, livre para pensar, planejar, sonhar, escrever mentalmente. Nesse estado fluo de volta para casa. No rádio uma música que não conhecia me diverte pela brincadeira com as palavras – e fala de amor, um bom projeto para o começo da noite. Paro no sinal para entrar na avenida, o lugar onde todas as noites encontro meus companheiros da rua. Faz tempo que não vejo o moço da perna eternamente enfaixada nem a moça que toca flauta. O que pede uma moeda hoje é desconhecido mas lá estão as costas curvadas, as mãos estendidas para que eu tenha a certeza de que não vai me atacar. Ao ver a moeda de um real ele sorri, quase comemorando, devo ter completado exatamente o que faltava para algo importante. Ele me abençoa, e me deseja saúde muitas vezes enquanto se afasta quase saltitando. Cruzo a avenida feliz – a volta para casa, a música, a alegria do homem no cruzamento. Mais a frente o trânsito está pior do que o normal, um carro parado na faixa reversível , os outros automóveis desviados para uma segunda pista . Nós, que vamos em direção ao centro, nos esprememos. Penso no azar que é estar em um carro quebrado numa hora dessas. Passo por ele e estranho haver gente atrás do carro e não na frente, ou na calçada, e olho para elas. Uma pessoa, não sei se homem ou mulher, segura a cabeça de um homem caído no chão – atropelamento, só pode ser – vejo o short sujo, as pernas sujas se mexendo em espasmos. Dor, me parece, muita, muita dor. Penso em insetos, me sinto culpada pela comparação, lembro de Gregor Samsa, Kafka, A Metamorfose. Nunca o livro fez tanto sentido. Vem a vontade de chorar e penso não posso, estou dirigindo. O choro castrado vira uns soluços secos, paulistanos. No rádio Mariana Aydar termina a canção começada por Rael. Penso em todos os discursos sobre o excesso de informação e sei que isso não tem a menor importância, com meio neurônio decidimos o que tem algum significado, mas que parte do coração dá conta do verdadeiro excesso, esse, o emocional, que em menos de dois minutos te faz viver  prazer, risada, música e dor?

Comentários