A
noite começa quando chegam à casa de férias. Logo desaba uma tempestade. Chuva
e vento como só a beira-mar. Não haverá enchente pois o mar ali é capaz de se
encharcar de qualquer volume de água e não há nenhuma árvore por perto que
possa cair e causar danos. Ainda assim, a natureza parece mais selvagem, mais
vigorosa, no comando. O barulho do vento parece mais próximo, como se ameaçasse
a parede da casa, a intensidade da chuva dá a impressão de que o aguaceiro não
vai ser contido pelo telhado e logo invadirá tudo. A tempestade não cessa por
horas e todos dormem no meio daquela agitação.
No
dia seguinte todo aquele céu perturbado desapareceu e a manhã amanhece clara,
lavada, sol de machucar a pele. Assim, vão todos para a praia. Apesar do verão,
das férias, da cidade estar cheia de gente, ainda há alguns recantos de areia semivazios,
com espaços sob árvores. Os pais colocam cadeiras na sombra, espalham cangas
para a bolsa térmica com água e protetor solar, para as roupas e toalhas. Ao
lado, um amontoado de havaianas. Os adolescentes e crianças correm para a água,
felizes pelas ondas. Nada que detestem tanto como um mar parado, daquele que
oferece pouco perigo. Precisam se testar, mostrar que cresceram e darão conta
de enfrentar o que vier. Da areia, os pais olham para a água todo o tempo. A
imprevisibilidade do mar presente na consciência, todo o tempo.
Pular,
mergulhar e brincar na areia esgotam a capacidade de divertir e os primos
começam a andar em direção às pedras costeiras, no fim da praia. A mãe do
garoto vê a silhueta dele e da prima diminuírem rapidamente e arrepende-se de
não ter corrido e proibido o passeio. Ele tem 16 anos, ela lembra ter se
aventurado nas pedras muito mais nova. Olha a irmã, mãe da sobrinha de 13 anos
e ela está tranquila. Mas seu peito está apertado, difícil ficar parada. Decide
ir atrás deles. Apenas diz aos outros: vou andar um pouco.
Os
dois estão chegando nas pedras quando ela sai. Sabe que por mais que corra não
vai alcançá-los. Anda rapidamente, como mais uma mulher aproveitando a praia
para se exercitar. Vê os dois começarem a subir as pedras e tenta guardar o
caminho que fazem. Sabe que vai ser bem mais lenta do que eles quando chegar
lá. É mais velha e não conhece a melhor rota, além de ter mais medo da morte, de
saber que ela existe e chega fácil.
Quando
chega às pedras, os dois desapareceram. Sente vontade de correr atrás deles mas
sabe que é impossível. Há trechos de pedras bem irregulares, é preciso olhar
com cuidado antes de colocar o pé, testar cada ponto para ver se o pé agüenta
as rochas pontiagudas. Passa o trecho inicial e chega a algo assustador. A
pedra é quase plana, com uma inclinação leve em direção ao mar. Seria um
caminho muito fácil se quase tudo não estivesse coberto por um musgo negro,
escorregadio. Não há como pisar nesses trechos sem rolar até a água. Em alguns lugares,
a água ainda desce a montanha e escorre pelas pedras, restos da tempestade da
véspera. Em frente não há ninguém, os dois sumiram depois da curva. Decide
avançar com cuidado. Sente urgência em alcançá-los, em falar voltem que é
perigoso, vocês podem morrer se caírem. Assim vai com muito, muito cuidado.
Logo
a faixa de areia da praia parece distante, outro mundo. Não ouve os ruídos
vindos de lá, ninguém a escutaria caso precisasse de ajuda. Da curva das pedras
à sua frente também não vem ruído algum. Anda, quase em pânico. Várias vezes é
obrigada a parar e olhar com muita atenção para descobrir qual o caminho
possível. Aí chega a uma brecha na pedra. Com cerca de um metro, o intervalo
entre as rochas abre espaço para o mar que entra. A distância é pequena, sabe
que consegue pular aquilo, mas fica paralisada pelo receio de não conseguir se
manter em pé do outro lado, onde uma espécie de degrau estreito é o único lugar
onde poderia se firmar. Só consegue imaginar a queda no mar entre as paredes
rochosas. Não sabe o quanto ficaria machucada, se conseguiria sair ou se morreria.
Senta e fica olhando. Sabe que os dois passaram por ali, saltaram e seguiram em
frente.
Desesperada,
berra várias vezes chamando e não ouve nenhuma resposta. Sente como se o ar
fosse um colchão envolvendo as palavras e segurando-as, sem permitir que
flutuem no espaço. Não há absolutamente ninguém escutando, está absolutamente
só. Percebe que apenas a consciência do que sente pode mantê-la sã. Sabe que
está tocando o desespero e que se fizer algo nesse estado estará em risco. Se
algo acontecer com ela, não poderá ajudá-los, caso precisem. Presta atenção na
respiração, tenta esticá-la e consegue se acalmar um pouco. Fica ali no tempo
congelado, sentada, olhando o mar entrar e sair do espaço entre as rochas.
Depois
de um tempo, ela vê os dois voltando. Andam com a tranquilidade de crianças
brincando no quintal de casa, o filho à frente. Quando chegam à brecha, ele
salta, sem nenhum receio, absolutamente seguro. Parece um caçador, um pescador,
um guerreiro, um homem absolutamente certo de sua capacidade de sobreviver e de
conquistar o que quiser. A sobrinha para na beirada e há medo nela. Não grande,
mas lá está a mesma dúvida: será que o pé não vai escorregar quando eu pousar
do outro lado? Aproxima-se, pronta para segurá-la se for necessário, e ela
salta. Por instante as mãos se tocam.
Começam
os três a fazer o caminho de volta. Os dois contam que andaram bem além daquele
ponto e voltaram porque no caminho havia uma toca com o maior caranguejo que já
haviam visto. Ela acha que há algo engraçado nisso. O medo vem daquilo que não
oferece nenhum grande perigo, no máximo um corte feito pelas pinças. O risco de
uma queda nas pedras, a ideia de que um deles não possa voltar sem ajuda, a
possibilidade de uma repentina chuva de verão tornar impossível caminhar de
volta, ou de uma queda no mar que leve a um afogamento - nada disso passou pela
cabeça deles. Sabe que precisa avisá-los que não devem voltar a andar por ali
mas também não quer aterrorizá-los, destruir a aquela energia de enfrentamento,
tão boa para viver a vida.
Com
voz calma e tranquila fala dos riscos. Não deixa que percebam o pânico que
sentiu. Fala de todas as possibilidades ruins que pode imaginar. Eles escutam,
sem retrucar muito, sem entender direito. A certa altura a sobrinha escorrega,
levanta com o joelho ralado, um pouquinho de sangue vem à superfície da pele.
Os três sabem que está tudo bem e seguem até o raso. O mar naquele canto está
calmo, limpo e o filho diz para sentarem ali, que a sensação é ótima. Ficam os
três sentados na areia, em cerca de 20 centímetros de água fria. Em volta o
barulho da vida de muita gente que fala, brinca, joga. O filho e a sobrinha
aproveitam para espantar o calor, ela internamente comemora estarem todos bem,
terem sobrevivido. Começa a se levantar e o filho diz: espera mãe, é muito
gostoso ficar aqui, fica mais um pouco. Ela fica, apesar de algo ainda se
agitar meio desesperado dentro dela. Como se faz para largar os filhos no mundo
sabendo que irão enfrentar coisas que não temos mais coragem de encarar? Como
fazemos para deixá-los ir sabendo que se sofre no caminho? Como as mães fazem isso
há milênios, sabendo que a morte também atinge jovens? Que coragem é essa necessária
para deixá-los ir? Ou talvez a pergunta seja: o que fazer para olhar a nossa
própria morte, cada vez mais perto? Como quem, da beira da pedra, olha o mar entrando pela
brecha até enche-la.
Você como sempre me emocionando... E me fazendo pensar. <3
ResponderExcluirMuito real esse sentimento materno de deixar voar, torcer para que seja bem alto e ao mesmo tempo assustar ao ver o voo :-)
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