O velho do apito de passarinho

Mais do que dos hormônios, minha química interna do humor é dependente do sol, da luz, dos dias bonitos. Um inverno no Alasca me transformaria em uma suicida irremediável; dias de céu claro me fazem feliz. Hoje meu corpo sabia do sol antes que eu abrisse a janela. Acordei, ao lado da cama havia um livro esperando para ser terminado – A velocidade da luz, do espanhol Javier Cercas. Dois personagens, um banal e um improvável, e lá estava eu grudada até o final nos espelhamentos criados pelo autor.
Livro acabado, café da manhã na cozinha. Na cesta, um lote de mexericas cariocas, para mim as melhores que existem, uma das raras coisas em que o cheiro dá um prazer tão vívido quanto o sabor. Fatias de pão integral, chá bom, jornal. Depois saio para uma caminhada, com Egberto no ipod, e o sol, muito sol. Intoxicada pelo dia, caminhar parece não dar conta de gastar minha energia, corro um trechinho. Um pouco mais de fôlego do que o habitual veio sabe-se lá de onde.
A gula por viver faz com que lembre do velho. Na manhã de um domingo, no chão da praça da cidadezinha mineira, seus apitos de barro se espalhavam sobre um plástico. Toscos, não cozidos, mal pintados, mágicos. Ele os soprava e diferentes pássaros pareciam estar ali, como em uma árvore, um quintal. Experimentei um, só consegui assobios desafinados.
Uma menininha de uns dois anos corria em volta. Minha bisneta, disse, com orgulho. Prestei atenção nele então. As costas um pouco travadas, restos de dores e de décadas de trabalho na terra, o rosto enrugado com olhos brilhantes, como os de um adolescente curioso, um sorriso enorme, as pernas ágeis, mãos grandes e ombros largos na medida certa. Não havia gordura nem magreza nele. Era um corpo de homem dos mais belos que já vi. Tenho 84 anos, completou ele, exibindo-se. Sabia que me agradara e gostava disso. Sorrio e digo: que criança linda!
Escolhi dois apitos, mesmo sabendo que nunca conseguiria fazer os passarinhos saírem de lá. Custavam quase nada. Agradeci e fui embora. Andei devagar e olhei algumas vezes para trás. Ele continuava lá, saltando de um apito para outro e sorrindo para quem parava. Vivo, imensamente vivo.

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