Vietnã

Tarde de domingo, resolvo ir ao cinema assistir Ferrugem e osso, filme que esperava entrar em cartaz, nem saberia dizer porquê. Chego ao Reserva Cultural uma hora antes, com receio de ficar sem ingresso. Escolho um bom lugar – a maravilha de poder marcar –, compro um café, uma água e me sento para ler e observar as pessoas. Fico impressionada com a quantidade de gente de idade. Ao meu lado duas mulheres com mais de setenta anos comem doces e conversam, animadas, sobre a família, filhos e netos. Ao mesmo tempo as duas reafirmam a intenção não aceitar as vozes que começam a querer determinar a vida que devem levar. São das minhas.
Entro na sala de projeção uns dez minutos antes do início do filme. Meu lugar é na ponta da fileira, sempre prefiro sair e entrar sem ter de pedir licença. Enquanto abaixo o assento da poltrona, olho meu vizinho. É um senhor com feições orientais, nas mãos uma sacola de plástico com revistas ou livros. Algo nele me incomoda, como se fosse um pouco doido, perigoso, não sei exatamente o que me faz ter essa impressão. Ele balança ligeiramente a cabeça sem parar, talvez um Parkinson, mas sei que não é isso que me perturba.
De uma das fileiras atrás de mim vem a voz de um rapaz. É tão familiar que fecho os olhos para tentar identificar quem me lembra. Não chego a me concentrar, uma voz fala em francês ao meu lado. A surpresa é tamanha que não tenho tempo de acessar a parte do meu cérebro que entende um tanto dessa língua. Compreendo só um trecho, ele diz que Hollande destruiu tudo na França. Não chego a entender o que afinal foi destruído, e qual a relação disso com o trailer. Sei que ele não fala para alguém em especial, e sim para qualquer um que queira ouvi-lo. Ele repete a mesma frase em português, sem nenhum sotaque. Como a pronúncia em francês também me pareceu muito boa, fico sem saber de onde ele é. Doido, como imaginei assim que o vi, mansamente doido. Meu fantasiômetro decide que ele é um vietnamita que viveu uma vida de aventuras e veio parar no Brasil meio por acidente.
O filme começa, e é daqueles duros de assistir. Só há sofrimento, durante a maior parte do tempo. Sofrimento seco, sem lágrimas, sem chantagens emocionais, sem discussão de relação. A angústia é tão grande que fica difícil respirar. Estou tomada pelo que acontece na tela, assim como meu vizinho. Não consigo deixar de prestar atenção nele que, aqui e ali, deixa escapar um “geniale”. Me dou conta que estamos na mesma frequência, eu falaria as mesmas coisas, se tivesse o hábito de falar em voz alta. Quando uma cena particularmente tensa termina, me percebo soltando o ar em um longo suspiro, ao mesmo tempo e com a mesma intensidade e duração que o do meu vizinho. Viro ligeiramente a cabeça, não chego a olhá-lo, mas percebo que ele virou a cabeça na minha direção, exatamente do mesmo jeito. Impossível não sentir afinidade, impossível me irritar com as palavras em francês com que ele continua a pontuar várias cenas, absolutamente emocionado.
Assim vamos até o fim, até a penúltima cena, uma das mais belas rendições ao amor que já vi. Um amor sem uma única gota de romantismo, pura necessidade e entrega. Há mais uma cena curtíssima e fim. Meu vizinho, quase em transe, solta um “maravilhoso”, dessa vez sei que para mim. Viro para ele meio sorrindo e digo um longo ééé. Ficamos os dois ali, nos recuperando da experiência enquanto os créditos passam. Tenho vontade de falar com ele mas não consigo imaginar nada, a cabeça no filme. Levanto e ando em direção à saída. Depois de uns passos, olho para trás. O meu velho vietnamita continua imóvel, quieto, no cinema já quase vazio.

Comentários

  1. Inês: passei a ter contato com tua escrita apenas recentemente, após tanto tempo termos nos conhecido. E, a cada nova leitura dos teus textos, renovados deleites. Obrigado por alimentar este mais que bem-vindo 'Da cidade, das coisas'!

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  2. Heitor, você foi um dos primeiros a falar "gosto, escreva". Nada pode ser melhor do que esses empurrões de amigo. Obrigada!

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