Imaginação

Atraídos pelos cadernos espalhados na mesa, meus olhos param na moça acompanhada pelo rapaz. Magra, ela tem o cabelo bonito e cheio preso em um coque no alto da cabeça, na orelha argolas grossas me lembram umas que adorava e foram roubadas. O rapaz, de óculos escuros, está em uma postura esquisita, a cabeça muito próxima da mesa, quase como se estivesse cochilando, mas tão torto que eu sei ser impossível dormir daquele jeito. Ao passar por eles, vejo que a garota está em uma cadeira de rodas. Pego minha comida e vou para uma mesa pequena, de onde ainda vejo os dois. Logo em seguida, o rapaz se levanta, desdobra uma bengala branca e vai em direção ao caixa. Aquele algo apegado ao sofrimento, vindo de uma tia-avó que só conheceu a casa e a missa, e que ainda hoje vive nos meus porões, geme  OOOOOHHHH! Algo bem mais ensolarado pensa “que máximo essa dupla”. Pelo andar dele, absolutamente desembaraçado, percebo que não é inteiramente cego, talvez veja vultos, ou sombras. Ele volta com um copo plástico com um sorvete ou uma sobremesa que passam a dividir. Ela come um pouco, toca no braço dele com as costas da mão e dá um pouco com a colher. Nesse vai e vem rapidamente o doce se vai.

Ela tenta voltar aos cadernos mas ele se cansou de esperar e começa a acariciá-la, a passar as mãos nas costas, no braço − impossível manter a concentração no estudo. Em certo momento, quando ele desliza a mão para a nuca dela, vejo a aliança grossa na mão esquerda e percebo que são casados. Depois de alguns carinhos, ela guarda os papeis em uma pasta, destrava a cadeira de rodas,  vai até a moça da porta – imagino a clássica pergunta feminina “onde é o banheiro?” – e desliza para longe. Enquanto espera, o rapaz coloca a cadeira comum no lugar que ela deixara vago e senta-se. Nesse movimento, a bengala dobrada escorrega para o chão, e ele se abaixa para pegá-la, sem olhá-la ou tatear, guiado pelo som. Depois começa a assistir algo no celular, com a tela a menos de dez centímetros do olho direito, provavelmente o que ainda vê alguma coisa. A vida imagina mais e melhor.

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