Carnaval

É carnaval, a cidade cheira a mijo e jasmim. Saio para encontrar um amigo mas como a praça Benedito Calixto está tomada de gente, subo caminhando até o metrô Clínicas. Ao passar pelas pessoas que descem a rua, tenho vontade de rir ao perceber como eu, vestida de preto, destoo dos grupos com roupas coloridas, enfeites, maquiagem colorida. Seria divertido comprar no camelô da esquina uns chifrinhos vermelhos que acendem e virar alguém fantasiada de diabinha. Lembro do chapéu de bruxa que vi ontem, transparente, meio rendado – com aquele me tornaria um feiticeira, com certeza.
No jantar falo, falo e falo sobre solidão. Há dias ando perturbada por uma história que ouvi, de alguém que foi para o hospital sozinha, manteve as pessoas amadas o mais distante que conseguiu e morreu. Por que alguém fica tão só em um hospital, podendo evitar? Por que não pedimos ajuda? Por que achamos que não valemos o suficiente? Por que é tão comum não acreditarmos que somos amados? Por que ficamos encolhidos quando seria mais fácil nos juntarmos, irmos na direção do outro? É preciso coração forte para conviver comigo, às vezes. O amigo dá conta de ouvir, sempre dá.
Mais tarde pego um taxi para voltar para casa. Mal sento e o motorista começa a elogiar meu cabelo. Fala o quanto são raros cabelos encaracolados, e como ele acha bonito. Cabelos lisos são comuns, diz ele, o seu me lembra Barbra Streisand. Gostaria que o meu fosse encaracolado também mas como não é mantenho assim batido, curto, completa. Não há nada ameaçador nele, me diverte o comentário. Na descida da Cardel Arcoverde vemos que o trânsito ao lado da praça está praticamente parado. Digo que vire à esquerda na João Moura e me deixe na esquina da Teodoro. Pago e sigo pela rua em direção à Benedito.
Não sinto nada da alegria carnavalesca na multidão que cruzo. Não há música, do centro da praça vem uma tentativa de percussão totalmente abafada pelo ruído das pessoas. São poucos os casais se beijando. Um carro cruza lentamente o amontoado de gente, dentro um rapaz com uma bandana cobrindo a cara e uma arma fantasia na mão. Na soleira de uma loja, um garoto muito jovem chora muito, soluça encolhido com o rosto entre os joelhos, um amigo tenta consolá-lo. Todo mundo está bêbado, olhos vidrados, naquele ponto em que a bebedeira deixou de ser algo que nos faz rir de qualquer coisa, mais próximos do momento em que o álcool faz chorar ou brigar. Passo tranquila, ninguém me provoca ou chateia mas tenho a sensação de estar no meio de um dos filmes Resident Evil que via com meu filho quando ele era pequeno e ainda não podia ir sozinho ao cinema - multidões de zumbis vagando pelas ruas.
Em casa, leio um pouco, tanta coisa boa que nem sei bem por onde começar. Mas é tarde, quero dormir e acho que não vai ser possível. Lá de fora vem muito alto um som horrível como se centenas de pessoas uivassem ao mesmo tempo. É contínuo, não diminui. Não há música ou percussão, só um grito gigante, coletivo. Fecho todos os vidros da casa, leio alguns poemas lindos de Emily Dickinson e apago.

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