Wanda e o amor


       Com minha gata Wanda prestes a fazer dez anos, levei-a para ser castrada. A minha casa ameaçava ser interditada pela saúde pública, já que a cada vez que ela entrava no cio, fazia xixi em lugares inadequados, como o sofá ou na estante de livros. Por que não fiz isso antes? Uma mistura de coisas. Um certo horror a cirurgias desnecessárias herdado de pais médicos que passaram a vida recitando o mantra de que toda operação traz riscos. Uma sensação de destruir a vida natural do bicho, já não bastava ela ser um bicho de apartamento? Tá, “que vida natural?” é uma pergunta possível. Uma vontade de não causar dor. Mas, como ficou insuportável, lá fomos nós, e na hora certa, descobri depois. Quando voltei à noite para pegá-la, a veterinária me mostrou o útero que haviam tirado da gata. Era um órgão inchado, tomado por uma infecção. Minha pretinha estava doente, e ia ficar bem pior.
       O estranho é depois ver o comportamento do bicho começar a mudar. Ela sempre foi muito arisca, gostava de vir quando bem entendia, desde que não fizessemos movimentos bruscos e não tentássemos pegá-la. Tomava todas as iniciativas, muitas incongruentes. Era capaz de se esfregar em mim pedindo carinho e quando eu estendia a mão, se afastava, para voltar em seguida, sem conseguir decidir se a mão ia acariciá-la ou espancá-la. Mesmo sem nunca ter apanhado de uma pessoa, ela agia como se tivesse uma memória herdada, um sensor de perigo obrigando-a a se afastar. Um pêndulo eterno balançando entre o “quero” e o “tenho medo”.
      Gente também faz isso. Há um tempo encontrei um conhecido e, por causa de uma brincadeira que fiz, ele contou uma história que me fez pensar por dias sobre porquê é tão comum esse comportamento. Uma amiga dele havia adoecido e ido sozinha ao pronto-socorro. Internada, manteve os amigos e a família afastados o máximo de tempo possível – afinal ninguém precisava se incomodar e não era necessário dar trabalho. A doença misteriosa evoluiu e ela morreu, assim, quase só, com a companhia apenas dos que se esforçaram muito para passar por cima de tudo que ela tinha colocado como obstáculo. Ele terminou de contar e falamos da incapacidade de deixarmos as pessoas que nos amam e que amamos por perto, falamos de perder amigos, aqueles que nos conhecem bem demais, e que levam parte do nosso mundo embora, sem remédio. No fim, partilhamos o conteúdo de uma embalagem de lenços de papel, sem que nenhuma das dezenas e dezenas de pessoas ao nosso redor se desse conta.
Wanda parece ir bem. Na noite após a operação ensaiou um dos seus maravilhosos saltos em direção à janela da sala, um dos seus lugares prediletos para ver o mundo. Não tem fugido rapidamente quando me aproximo e já aceitou uns carinhos não solicitados. E não há mais xixi fora do lugar. Ainda tenho uma pontinha de desconforto por ter interferido com a natureza dela. Continuo pensando em nós, humanos, e em nossa capacidade tão pequena de mudar o que nos faz mal. 

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