No celular

    No ônibus, escuto o homem conversar no celular. Não chego a ver seu rosto mas a voz grave é calma, tranquila e sinto que ele busca torná-la mais doce, como quando queremos atrair um filhote de gato. "Estou morto de saudade, mas logo vai passar, em dezembro chego aí. Se você quiser pode vir em dezembro, mas a gente vai conversar direitinho sobre isso depois, está bem?" O barulho do motor impede que eu escute uma parte do que ele diz. Depois ouço " o papai te ama minha filha, um beijo". Outro homem também fala ao celular na parte da frente do ônibus, esse tem uma voz áspera, o sotaque nordestino. "Você faz o que você quiser, você é adulto". Ele não está brigando, apenas reafirma o direito do outro tocar a própria vida. Continua: "Deus está com você, Deus te proteja, fique boa logo minha filha." A conversa se estende, parece que ele fala com muita gente, uma imensa família distante. Já ouvi muita briga no celular e me toca a conversa dos dois homens, provavelmente de volta do trabalho, no espaço que sobrou para aqueles afetos. Acho bela a maneira entregue com que eles falam. Caminho para casa surpresa pelo que acontece na cidade, pela milionésima vez. Entro no meu prédio, o ar cheira a dama-da-noite.

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