Sankofa

Agora choro um pouquinho todas as noites, como uma tola envolvida por histórias alheias. Depois de jantar, pego o iPad e vejo um episódio de uma série. Assistir a algo num tablet é quase uma heresia, eu sei, mas adoro a sensação das imagens assim tão próximas, tão pessoais. As histórias contam de um tempo em que eu ainda não era nascida, falam de parteiras, sempre cercadas por mulheres parindo, em uma Londres pobre, com casas condenadas da época da Segunda Guerra, com meninas prostitutas de quinze anos, com velhos que perderam a família nas batalhas e nos bombardeios.  Nessa época, ter filhos era inevitável – a pílula ainda não existia – e as mulheres os têm aos montes. Os bebês nascem em em casa com parteiras que dominam tudo o que precisa ser feito – quando a mulher deve fazer força, como precisa respirar, quando é melhor se conter, em que posição ficar para um parto em que a criança se apresenta de nádegas. É um mundo de mulheres que me comove, talvez por causa da minha mãe, que cuidava de grávidas e fazia partos. Uma de suas amigas, que teve a maior parte dos filhos com ela, contou que ela cantava o Magnificat assim que os bebês nasciam. Esse era bem o jeito dela.
Choro também pela quantidade de amor existente nas histórias, pela diversidade desses amores, vários dos quais seriam execrados no mundo em que vivo. Há a mulher que vai ter o 25o filho, todos vivos. Ela é espanhola, jamais aprendeu inglês, o marido não sabe nada de espanhol, e ainda se amam apaixonadamente. Quando perguntam quando ela ficou menstruada pela última vez, o marido explica que há muitos anos ela não menstrua porque emenda um filho no outro. Lembro de minha mãe contar de uma paciente que ficou dez anos sem menstruar porque os filhos se sucediam sem intervalos. Outro desses amores talvez terminasse na ala psiquiátrica. Dois irmãos vivem juntos em uma pequena casa pré-fabricada - ele compra e vende peixes, ela faz faxina. Quando ele tem câncer, a enfermeira descobre que os irmãos partilham a mesma cama. Chocada, conta a uma das freiras ter descoberto o incesto. A religiosa não se incomoda, não julga, apenas explica que os dois viveram em orfanatos e que um representa para o outro o único amor que conheceram.
Sei de religiosas assim. Uma delas trabalhou como voluntária no Emilio Ribas na época em que as pessoas com Aids morriam aos montes. Um dia, se viu ao lado da cama de uma prostituta. A mulher já deveria ter morrido, estava em condições péssimas, mas resistia, se sentia culpada porque havia contraído HIV trepando com homens por dinheiro, e passara o vírus para o companheiro. Muito pobre e muito simples, não conseguia morrer, atormentada. A religiosa disse a ela que não se preocupasse, Deus havia de entender, sabia que ela não tinha tido outra maneira de ganhar a vida e que também não fazia ideia que estivesse doente quando contaminou o marido. Logo depois a mulher morreu, em paz. Dessa mesma religiosa, ouvi uma vez: não se preocupe, nós somos imperfeitos, é assim mesmo, nossa única missão na Terra é, apesar disso, amar. Foi como mergulhar em um rio de águas claras e frias e sair nova do outro lado. Nunca mais o que me preocupava voltou a me atormentar.
Esse é um estranho mundo que partilho com poucas pessoas – minhas irmãs e minha família torta, a dos amigos dos meus pais. Um mundo onde só a generosidade e a partilha faziam sentido. Um mundo onde todos os doentes eram atendidos: os que pagavam, os que o Estado pagava por eles, os não tinham como pagar. Estes últimos, às vezes, levavam junto com a receita um dinheiro dobrado, para comprar o remédio de que precisavam. Um mundo onde, apesar da religiosidade, se julgava pouco e se perdoava bastante. Um mundo com algumas regras duras também, que ainda nos amarram e que são difíceis de soltar, porque dá medo que a beleza vá embora junto.
Na cultura de um dos povos de Gana, existe a palavra sankofa que significa mais ou menos voltar atrás para pegar algo. Pode ser entendida como olhar o passado para mudar o futuro. Talvez eu, a que costumo olhar muito pouco para trás, esteja começando a ver as coisas que ainda vale a pena carregar para separá-las daquelas de que devo me despedir com um beijo, talvez chorar um pouco, e depois largar. 


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