Um outro saxofone


Depois do cinema saio para o frio da Paulista, andando rápido. Na calçada, ouço alguém tocar saxofone, um improviso, uma brincadeira com um pequeno tema. O som é lindo, grave, de sax tenor, e quem toca sabe o que está fazendo. Estranho um músico de rua ainda estar tocando sozinho de noite, no ar gelado. Me aproximo do som e continuo sem ver de onde vem até chegar na esquina, só aí me dou conta de que o músico não está parado, ele anda e toca ao mesmo tempo. O sinal para os pedestres abre e seguimos. Mesmo tentando ir devagar, ainda sou mais rápida que ele e começo a me distanciar. Atrás de mim escuto um outro som se misturar, um instrumento de corda entrou na música, respondendo ao saxofone. Começo a fazer força para não rir alto, a experiência é tão bonita e inesperada que tenho vontade de gargalhar de prazer, como fazem as crianças muito pequenas quando ganham o brinquedo mais desejado.  Olho para trás para descobrir onde está o instrumento de corda, talvez seja um violão. Pela calçada vem um triciclo com dois clowns, o da frente pedala e o de trás toca, provocando o homem do saxofone.  Só então vejo melhor o saxofonista. De moleton, com o capuz puxado na cabeça, ele é alto, acho que bem moreno, na casa dos trinta. Dou risada olhando para ele, espero que saiba o prazer que o inesperado me dá.  Os rapazes do triciclo me ultrapassam, dão meia volta e seguem novamente na direção do saxofone que fica cada vez mais distante. Ouço o clown mudar a brincadeira, ele deixa de acompanhar o sax e começa a competir com ele, dedilhando uma música do Gismonti. Não consigo identificar qual, ela está meio perdida em algum momento distante da vida que não consigo recuperar. Um momento em que ouvi muita música instrumental, e em que li compulsivamente Apenas um saxofone, da Lygia Fagundes Telles, para mim o conto mais triste do mundo. Merde, voilà l’hiver, dizia a personagem. Impossível não lembrar disso nessa noite fria, embora minha sensação seja oposta. Sigo andando, primeiro o som do violão desaparece, mas por um tempo ainda ouço o homem do saxofone.


Comentários