Mulheres, um monte delas

Começo o dia com um iogurte e o jornal na mesa da cozinha. Leio uma matéria sobre o documentário India’s daughter, de Leslee Udwin, sobre o estupro da estudante Jyoti Singh, morta por seis homens. Já havia lido a respeito, mas o que ela conta é tão brutal que não imaginava ser possível. O caso detonou protestos de milhares de pessoas não só na Índia mas em outros lugares do mundo e Leslee conta que nenhum dos homens se arrependeu nem por um segundo porque acham que não fizeram nada errado. Penso em como homens nascidos de mulheres podem estar tão distantes de compreendê-las, tão desconectados de seus corpos.
Saio, tenho um monte de pequenas coisas para fazer na rua. Desço do metrô, ando um pouco e vejo a mulher na esquina, nessa manhã fria, ameaçando chuva. Ela está sentada em algo que não sei o que é. Ao lado, um grande saco plástico, desses de cem litros, guarda parte do que tem; na frente do saco, um plástico transparente está cheio de desenhos coloridos.  Do outro lado há caixas de lápis de cor e hidrocor. A mulher é bem velha, cabelos finos e brancos, rosto de muitas linhas finas cortando a pele, olhos pequenos e amendoados. A roupa parece ser de algodão muito fino e ela está quase inteiramente coberta por um cobertor que alguém que conheço chama de “seca-poço”, aqueles que parecem um feltro cinza. No colo há um desenho e ela pinta as duas figuras humanas em pé, de frente uma para a outra. O traço tem a simplicidade daqueles das crianças de cinco, seis anos, tudo muito colorido. Uma mulher em pé conversa com ela. Tem jeito de ser moradora da região e não saber muito o que fazer com alguém tão fora da comum. Mas ela tenta, pega uma caneta colorida do chão e estende para a senhora, como uma sugestão. Com impaciência, a mulher mais velha diz não, esta é muito grossa! Pela intensidade, deixa claro que os desenhos, as cores, são o que há de mais importante na vida. Penso em Nise da Silveira e seu Museu de Imagens do Inconsciente. Por que tão poucos reconhecem a capacidade curativa de fazer o que essa mulher na calçada faz? Talvez devesse ter pena dela, tão sozinha nessa cidade, mas não consigo. Tenho receio, sim, de que passe necessidades de todos os tipos, mas os desenhos infantis parecem ter mais significado do que grande parte do trabalho “9 às 6” que é feito no mundo.
Resolvo outras coisas pela rua e emendo com um cinema – Que horas ela volta? Deveria falar da questão política, social mas essas os críticos já deram conta. Me toca a história de mulheres, a história de mães, e não consigo deixar de pensar como fazemos mal essa maternagem. Não é uma sensação de culpa, é mais uma constatação do quanto vivemos errado.
De volta em casa, entro no Facebook para ver se há algo importante entre aquelas notificações vermelhinhas. Coisas do dia a dia, amigos aproveitando o fim de semana, São Paulo como sempre. Mas na passada pela timeline, dou com dois posts que quase me colocam para chorar. Em um, T. conta a emoção de ver, como voluntária, uma família reunida pela primeira vez com a filha adotiva de três anos. Em outro, I. mostra a foto de um pequeno garoto do Haiti que apadrinha há quatro anos. O dia começou com uma história de estupro brutal e termina com manifestações de amor gratuito, daqueles dados sem nenhuma obrigação, sem nenhuma imposição. Saberão algum dia essas duas crianças que são queridas assim, à distância? Penso sobre a complexidade da vida, como somos pequenos demais para entendê-la. Desconfio que essa é uma das razões para que queiramos tanto estar certos, queiramos tantas certezas. Mas o mundo, esse, se recusa todos os dias a ser reduzido ao pequeno ângulo da nossa visão.

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