Angelus Novus, Paul Klee.
Na última semana andei acordando
no meio da madrugada, ansiosa, cansada, doida para dormir de novo mas com um
imenso impulso de abrir os olhos e ir ver o que acontece no mundo. Coisa de
gente meio louca. Acho que os últimos tempos foram demais para mim. Não lido
bem com lobos solitários, guerras, bombas caindo na cabeça de crianças, balas
perdidas em favela, adolescentes que consideram o assassinato em massa como uma
boa opção, policiais matando negros por serem negros. A vontade, às vezes, é de
gritar de impotência. O mundo seguirá sendo o que é, as mudanças vão acontecer com
o tempo mas são coletivas e não dependem do meu desejo. Parece tolo por ser
óbvio? Deve ser os dois, tolo e óbvio, mas não muda o que sinto.
No meio do caos, me dou conta de
que tenho lido bastante sobre o mundo. Não sei se entendi um pouco mais, talvez
só esteja mais perturbada. Um dos livros da leva foi o Vozes de Tchernóbil, da
Svetlana Aleksiévitch. A primeira página já escancarou a minha ignorância.
Embora a usina ficasse na Ucrânia, o vento levou a radiação para o país ao lado
e a rural Bielorússia sofreu a maior
parte das consequências. As pessoas não sabiam o que era radiação, como se
proteger, o que evitar. No meio da Guerra Fria, uma parte do partido imaginava
que fosse um complô do ocidente. Os entrevistados de Svetlana contam sua
história em primeira pessoa, a gente escuta as vozes com assombro. Há os
velhinhos levados para longe de suas terras, os animais domésticos mortos aos
milhares, crianças doentes porque deitaram na grama, as casas enterradas com
tudo dentro. Sim, enterradas. Abre-se um buraco imenso, pega-se a casa, joga-se
dentro e cobre-se tudo com terra – as louças, as fotos, os brinquedos das
crianças, os oratórios dos velhos, a comida feita. A constatação de que aquilo
não passará vem lentamente, serão necessários centenas de anos, talvez
milhares, até que não seja mais necessário pensar em dosímetros, urânio, césio,
grafite. Na história que fecha o livro, uma mulher conta que ao final da vida
do marido, um dos que trabalhou diretamente na usina depois do incêndio, eles
ainda transavam, e com mais intensidade do que nunca, mesmo ele estando completamente
deformado por um câncer que afetou todo seu corpo. Os médicos já haviam desistido
de fazer qualquer coisa e achavam que o melhor seria que ele morresse logo. Na
falta de recursos da ciência, ela, como outras mulheres, dava em seu marido
injeções de vodka para aplacar a dor.
Depois
terminei o Em nome de Deus, da Karem Armstrong, que vinha arrastando há mais de
ano. Porque o fundamentalismo, pergunta ela? A resposta que ela dá faz algum sentido.
O espírito secular, ocidental, considerou que oferecia a melhor vida possível a
qualquer um. E tratou de impor esse modo de vida em muitos lugares. Não à toa
isso incluía o capitalismo e o consumismo, sabemos. Milhões de pessoas viram
arrancadas à força de sua vida tudo o que dava sentido, sem que nada fosse
colocado no lugar. Não tenho religião, também quero um Estado laico, mas minha
avó usou véu na missa até morrer. Ela se consideraria agredida se alguém
tirasse à força isso dela.
Nesse estado
de espírito meio pesado, pego outro livro, de Cees Nooteboom, um escritor
holandês que adoro. Antes mesmo prólogo, há uma citação de Walter Benjamin,
sobre um quadro de Paul Klee chamado Angelus Novus. O trecho final diz o
seguinte: “Ali onde vemos um encadeamento de acontecimentos, ele vê uma única
catástrofe, que se amontoa continuamente em escombros que lhe vêm parar aos
pés. O anjo não se importaria em se deixar ficar ali, ressuscitando os mortos e
recompondo os destroços a fim de obter um conjunto. Mas eis que o vento
provindo do paraíso apanha suas asas numa tormenta tão violenta que ele já não
as pode fechar. A tempestade o propulsiona irresistivelmente rumo ao porvir, a
que ele havia dado as costas, enquanto as ruínas diante deles se encastelam até
alcançar o céu. É a essa tempestade que demos o nome de “progresso”.” Walter Benjamin escreveu isso quando sentia
sua vida afundando numa Europa à beira do nazismo. Só agora, escrevendo aqui,
me dou conta de como o título do livro de Nooteboom cabe muito bem ao mundo
como é agora, como sempre foi talvez – O Paraíso Perdido.
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