A semana deixa uma sensação de fim do dia, a hora
das sombras longas. Os amigos me falam de angústia, da incerteza do que vem.
Não só aqui, no Brasil, depois que os mesmos de sempre conseguiram o poder
novamente. A possibilidade do horror parece se estender sobre tudo. A amiga da
Alemanha conta que o ministério do interior recomendou que eles tenham vinte
litros de água estocada por pessoa, e comida. A guerra na Síria só aumenta e a
Alemanha tem ligações fortes com a Turquia que, com seus recentes ataques na fronteira, vira
um alvo mais importante ainda, assim como seus aliados. Leio no jornal que os
estudiosos de guerras civis não enxergam a possibilidade de que essa acabe tão
cedo: são muitos grupos, muitos países armando os combatentes. E se acabar,
pode ser ainda pior, com massacres dos perdedores e a confusão se espalhando
pelo mundo. No momento, o mundo não se parece com o que quero.
A força da vida segue, no entanto. Depois do
almoço saio para ver a Feira Tijuana, na rua Três Rios. Cada vez mais me interessam os livros de
artistas, as edições meio handmade. Desço na estação da Luz, pego a rua Prates
e é outro o mundo. As lojas com seus letreiros em coreano, os velhinhos
orientais andando muito devarinho na calçada.
Um judeu de barba longa, chapéu alto e livro na mão, ponta do chale escapando
por baixo do casaco, segura a mão de uma senhora idosa toda curvadinha. Devem
estar de volta da sinagoga. A igreja protestante com letreiro em coreano tem
marcas de velhas letras arrancadas que indicam que ali era o prédio administrativo
do cemitério israelita. As mudanças de ocupação do bairro escancaradas para
quem quiser ver.
Compro algumas coisas na feira; a beleza e a
poesia mudam meu humor. O dia torna-se bonito, agradável, cheio de
possibilidades. Decido ir à Pinacoteca, é cedo ainda. A prostituta que vi
na ida continua encostada nas grades do parque da Luz, com seu short e botas
pretas. Beirando os quarenta anos, ela parece ter todo o tempo do mundo para esperar
um cliente. Entro no prédio do museu e circulo pelas exposições. Nada realmente
mexe comigo. Sou daquelas que espera que a obra chame, como um novo amor à
primeira vista. Até que chego às esculturas de José Pedro Croft, instaladas no
centro do prédio. Altas, abstratas, feitas de vidro, espelho e ferro, elas
desestabilizam o mundo que vemos. Em uma delas um grande espelho reflete quem
olha, em outras a moldura vazada de ferro faz com que eu espere o espelho que
não está ali. No chão, outros espelhos refletem o pé-direito altíssimo e o tudo
parece invertido. Um desconhecido me olha e minutos depois se aproxima. Diz que
eu devo me inclinar e me ver no espelho do chão. Assim faço, dá uma leve tontura. Ele diz que formam-se imagens fantasmas. Fique aí que vou fotografar e
mostrar para você. Assim faz e lá estão duas de mim, uma quase de costas para a
outra. O desconhecido pergunta quer que eu mande para você? Quero! E ele me
manda por whats. Nos despedimos com um meio abraço e vou para o café, olhar o
parque antes de ir para casa. Aqui também as sombras são longas mas de outra
natureza, a das árvores com suas raízes imensas e idosas expostas. Dou uma volta no parque, um velhinho de camisa branca toca saxofone sentado em um banco. Sinto que poderia
cantar e dançar agora.
Comentários
Postar um comentário