O céu do Cariri é azul, azul. Não
o azul da praia, sempre tingido por uma fina película de água que deixa tudo
meio lavado. Azul forte, convicto. A
primeira vez que coloquei os pés no Ceará foi no começo de agosto, num lugar a
cerca de 125 quilômetros de Jucás, onde meu pai nasceu. Na época dele o
município chamava-se São Mateus. Alguém, em algum momento, resolveu devolver o
nome indígena, melhor assim.
Apesar de ser uma viagem de trabalho,
sobrou um tempo e fomos ver a estátua do padre Cícero, afinal o lugar é um dos
maiores centros de romaria do Brasil. O carro sobe uma estradinha distanciando-se
um pouco do centro, o lugar era onde o padim ficava quando queria se isolar da cidade.
Lá em cima, no ponto mais alto, está a estátua. Na área em frente, dá para a
ver o paredão da chapada verde ao fundo, lindo, e mais próximo de quem olha a
vegetação é seca, quase como depois de um incêndio, com a diferença de que não
há cinzas em nenhum lugar. A casa dele foi transformada em museu, algumas salas
reconstituem a casa como se ele ainda estivesse lá, deitado na rede em frente à
cama, mas a maior parte dos lugares mostra ex-votos talhados na madeira. São
tantos que as salas são separadas por temas – mãos e braços em uma, muletas no
alto, um armário de canto com roupas militares, a parede com cópias de diplomas
universitários. Uma sala com ar de cozinha destoa disso tudo, nela há enormes
jarros de cerâmica cheios de água. O visitante que conhece a tradição pega uma
das conchas penduradas no alto, enche umas das canecas de alumínio e bebe.
Algum tipo de água benta, imagino. Olho uma velhinha que bebe da água e penso
que ela poderia ser minha parente: miúda, magra, o cabelo muito fino e
comprido, ligeiramente grisalho, torcido e preso em coque na cabeça. Parecia uma
irmã deslocada no tempo da minha avó Dolores. Ou da minha tia-avó Totonha, que
fazia renda de bilros, nunca casou mas que, em uma noite no sertão da Bahia,
ajudou a irmã a fugir para ficar com o homem que amava. Umas mulheres secas,
duras, que falavam pouco, trabalhavam sem parar e descansavam rezando o terço.
A sertaneja é antes de tudo forte.
Impossível não pensar que meu pai
saiu de um lugar lá perto com dois anos de idade, junto com a mãe grávida, dois
irmãos e uma irmã mais velhos e o avô dele, indo para ajudar a controlar as
crianças no navio. Peguei um Ita no norte - exatamente assim. O meu avô tinha
ido na frente, e terminou se instalando em Niteroi. A família contava que meu pai quase deixou o avô maluco porque não
parava um segundo e, aos dois anos, temiam que ele pudesse cair no mar. Quem o
conheceu adulto não imaginaria as histórias impossíveis de infância que ele
tinha para contar. Em uma delas, um grupo de crianças pegou um barco a remo
para ir a uma ilha. Um grupo rival roubou o barco. Meu pai ainda não sabia
nadar e voltou para casa rebocado pelo irmão mais velho, que sabia. O sertanejo
é antes de tudo um forte, mesmo dentro d'água. Ele aprendeu a nadar depois, de
um jeito que ninguém mais que eu conheço nada, respirando para os dois lados, sem
colocar o rosto na água, lentamente, sem afobação.
Hoje, novamente por causa do
trabalho, me peguei lendo um texto sobre o Ceará e a famosa seca que começou em
1877 e durou três anos. Vi fotos de pessoas que eram só cabeça e joelhos, o
resto bem fininho, a pele colada nos ossos. Aprendi que no interior instalaram
campos de concentração, para impedir que os retirantes invadissem a capital. Vi
novamente os relatos dos cearenses que fugiram da seca e entraram Amazonas a
dentro em busca de látex. Meu bisavô foi um deles. Passou um ano dentro da
floresta, junto com um primo, extraindo a seiva das seringueiras. Lembro de ler
no livro escrito por um dos seus filhos, que eles acordavam às quatro horas da
manhã porque as árvores têm seus horários e neste é o que há mais seiva.
Terminou capataz de um seringal chamado Santa Clara onde, nas festas, os donos e seus convidados usavam cristais vindos da Europa. Isso na beira de um afluente do Amazonas, um lugar
onde os jacarés durante as cheias batiam com os rabos por baixo dos pisos das
casas. O que será que ficou em mim dos sonhos,
dos medos deles? Tanta vida.
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