Volto escrevendo no carro. Sempre faço isso, uma
ideia me pega, uma perturbação incomoda, há algum encantamento ou beleza e lá
vai o cérebro escrever enquanto o piloto que vive em algum lugar mais automático
dos neurônios segue dirigindo. Muda as marchas, freia na hora certa, observa o
velocímetro para não estourar o limite de velocidade e me deixa em casa
direitinho. Hoje duas perturbações ficaram se enroscando. Uma delas me acompanha
há uns dois dias. O Dicionário Oxford escolheu como a palavra de 2016 post-truth. A definição é razoavelmente
clara – circunstância em que os fatos objetivos são menos influentes na
formação da opinião pública do que o apelo às emoções e às crenças pessoais. Define
maravilhosamente o ano e me faz sorrir um pouco. O que leva à outra perturbação,
uma que descreve o espírito do mundo agora. Postei a imagem: o medo aquecendo a
ignorância e resultando em ódio. Essa não me faz rir, essa me oprime por
desenhar o que tenho visto todo o tempo nas conversas, nos escritos, nas
avaliações que fazemos uns dos outros.
Temos nos sentido bons ultimamente, do lado certo
das coisas, do lado das grandes verdades e há algo de assustador nisso. Não
temos feitos algumas perguntas que me parecem importantes agora: por que as
pessoas que pensam radicalmente diferente de nós pensam o que pensam? Agimos
como se as respostas fossem simples, elas oscilam entre porque são uns
maus-caracteres e porque são ignorantes. Ponto. E me pergunto qual a capacidade
de mudança dessas respostas? Me parece que nenhuma. Para os que acham que o que
penso são um sinal de mau-caratismo e ignorância minha reação automática é
virar a cara e estabelecer ligação com os que pensam como eu. Desconfio que é
uma reação bem comum. Fica estabelecido então um estado de guerra insolúvel do
qual não há possibilidade de se escapar. E como fugir disso? Como
estabelecer uma conversa com alguém que vemos como o outro, ou que vemos talvez
como o mal?
É uma polaridade brutal. Volta e meia
digo que a grande questão que sempre tento entender é a da ordem para a
aniquilação, aquela dos judeus nos campos, dos tutsis à golpe de machado, das
cabeças decepadas dos infiéis pelo Isis, do discurso do Trump em relação às
minorias, do que pregam os supremacistas brancos. Era algo horrível e
distante, me parece muito mais próximo agora. E vindo também do lado das pessoas
que amo e que vociferam impotentes contra a burrice alheia. Vindo da minha
impotência. Assim, a pergunta que faço, a única que acho que vale a pena agora
é de onde vem o medo e a ignorância? A minha, a nossa, a da mulher que talvez tenha feito sinceramente aquele discurso maluco sobre a nova bandeira comunista
do Brasil, sem enxergar que o que havia ali era só a bandeira do Japão.
Isso aí.
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