Universos maiores

Colagem Valéria Mendonça
Acontece mais ou menos assim. Você deita, lê um pouco, ou vê um filme, ou faz outra coisa qualquer e o sono vem, grande, bom. Você apaga a luz, fecha os olhos e dorme. Vem um início de sonho e você acorda com o coração como se estivesse rolando por uma escada, batendo descompensado pelos degraus e a sensação é de que a garganta fechou e nunca mais vai ser possível respirar. Aí você percebe que está tudo certo com sua garganta e com sua respiração, é algo alojado em um lugar muito mais remoto, em lugar muito mais profundo que te perturba, mas o quê? Você pesquisa síndrome do pânico, nada a ver. Apneia do sono? De jeito nenhum. A fase passa, você acha que foi muito trabalho, estresse, cansaço. Aí, uma de suas irmãs, em um dia em que vocês duas tomam chá na mesa da cozinha, falando de desejos e futuro, te mostra um vídeo em que a Viviane Mosé fala sobre angústia. Ela diz que angústia é o que te fecha a glote de noite e faz você achar que vai ter um ataque cardíaco. Isso acontece, ela explica, porque você está maior do que sua casca e é preciso mudar a vida e procurar universos maiores para que tudo se resolva.
Universos maiores? Tem proposta mais bonita e difícil do que essa? Me dou conta – porque a você no texto sou eu mesma – que ao aperto na garganta se seguiram uma enfiada de sonhos poderosos, com histórias que nunca aconteceram antes, símbolos inéditos. O novo se arma em algum lugar. Fuço em alguns blogs e a encadernadora se despede em seu texto dizendo que espera que estejamos fora, em aventuras, remando um barquinho num lago azul. Vejo a cena, sinto o cheiro de água e me dou conta de como ando ancorada aqui, viajando à volta da minha casa, na mesma rota, mesma comida, mesmos cheiros, mesmas pessoas, mesmas ideias.
Almoço com um amigo e sua hóspede. E ela, que nunca vi antes e que provavelmente não verei mais, me conta que foi voluntária na Grécia. Enfermeira, foi trabalhar com refugiados. Diz ela eu tinha onde ficar, e quinze euros por semana para comer. Conta dos desencontros da boa vontade alheia. Médicos nórdicos completamente desentendidos do que significa ser árabe, muçulmano, refugiado. Sem entender nada daquele povo que quer contar a vida, chorar, colocar o afeto no meio da roda. Por que não chamar os próprios gregos? Eles entendem aquelas pessoas, eles são vizinhos há séculos, ela pergunta.
Saímos os três para uma exposição no galpão do Videobrasil, um espaço inesperado, no meio da avenida Leopoldina. No vídeo "Nada levarei quando eu morrer, aqueles que me devem cobrarei no inferno", Miguel Rio Branco mostra cenas de uma região paupérrima de Salvador. As prostitutas parecem acabadas, os cachorros são magros e doentes, as paredes descascadas mostram uma vida de muitas tintas. Um homem acaricia os seios de uma mulher em pé, pessoas assistem a cena, uma criança entre elas. Uma mulher tapa o rosto envergonhada quando percebe que está sendo filmada. A câmara desvia e mostra crianças lá fora. Elas brincam, crianças brincam sempre que podem. Junto o que ouvi sobre a Grécia, o que assisti, e vejo meu universinho minúsculo, preso na borda de pequenas coisas. Não há ar em um tonel tapado. Penso em um dos estranhos sonhos, em que uma amiga tira do fundo do mar um esqueleto e ele volta à vida. Subir à superfície e respirar. É lá fora que estão os novos universos.

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