A violência dos afetos


Há uma raiva no ar, mesmo no meio das comemorações do meu aniversário. Eu e meus amigos falamos alto, estamos bravos, estamos emputecidos. Como desconstruir o que acontece agora? O mundo lá fora me aterroriza um pouco. Na véspera, as notícias no Guardian eram de sair gritando. Havia os desdobramentos do ataque em Manchester, onde um jovem se explodiu matando 22 pessoas. Os países mais ricos reunidos no G7 não conseguiam chegar a qualquer acordo já que com o Trump como presidente dos Estados Unidos não há como melhorar a vida dos que vagam pelo mundo fugindo de fome e de guerras e nem como proteger o ambiente para que reste a possibilidade de um futuro. No Egito, 26 haviam morrido em um ataque armado contra cristãos coptas; nas Filipinas, a população de uma cidade fugia de um grupo pró-Isis. O primeiro-ministro húngaro dava apoio a uma organização de direita anti-LGBT argumentando agir em defesa da família; em Bangladesh, os islâmicos extremistas forçaram a retirada de uma estátua da Justiça personificada como uma mulher que carrega a espada e a balança porque consideravam que era idolatria. Apenas um dia, cheio de ódio, de desejo de destruição de tudo o que é diferente, de tudo que não reza igual, que não tem a mesma cor, que não é uma família de receituário.
Na minha cabeça, volta a voz do professor me dizendo como anda difícil dar aula – qualquer palavra mal interpretada sobre Reforma Protestante, por exemplo, pode levar a protestos de alunos, intervenções iradas da família. Lembro da resposta do diretor de outra escola quando perguntei como os pais reagiram ao fato dos professores terem aderido à greve geral de 28 de abril – com ódio, eles reagiram com ódio, ele disse. Mais do que um governo injusto, me assombra a irracionalidade, a ignorância e o medo determinando tudo. E esses aspectos não podem ser depostos, não mudam depois de uma eleição. O trabalho pela frente é maior e muito mais lento, e é necessário arranjar um canto de paz no meio disso tudo.
No dia seguinte saio para assistir ao show de um amigo – e lá tudo é beleza. A poesia e o que ela diz, os músicos que olham apaixonados para seus instrumentos, as sonoridades dos arranjos. Música para arrepiar, música para marejar. Percebo que falo e penso tanto, com tamanho susto pelo que vejo à minha volta e esqueço que a beleza e o amor são os antídotos capazes de ajudar a suportar a insanidade que gane e geme lá fora. É preciso, às vezes, que algo coloque a esfera do afeto violentamente de volta na minha direção para que eu me dê conta, mais uma vez, de onde está o que me sustenta.
Lembro do senhor que conheci em Brasília, num bar, e que me mostrou as fotos de um passado distante, de quando era jovem e participou de um primeiro contato com uma comunidade indígena. Na foto, um homem jovem, muito branco, loiro, vestido, está cercado por homens nus, enfeitados com um pedaço meio cilíndrico de madeira preso ao queixo. São todos belos. Ele me diz – tive vergonha de estar vestido. Um olhar para o profundamente diferente em que cabe respeito e não uma vontade imensa de massacrá-lo para que ele se torne um igual, ou desapareça. Andar de olhos e ouvidos abertos tem sido a única maneira que encontro de mudar o que sou e, no momento, esse  parece ser o único jeito que existe de mudar o mundo.


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