Sol, surf, silêncio

A gata amassa minha barriga, suas garras me arranham levemente ali onde a blusa meio levantada deixa a pele exposta. Este é seu corpo, ela parece dizer.
No computador sigo um filme de surf – não sei porque adoro surf, o movimento das ondas, o deslizar da prancha, o sol na água transparente. Nunca surfei vida, tenho um medo pânico do mar e uma coleção de histórias terríveis sobre ele, resultado de ter morado em cidade de praia quando criança. O máximo que fiz foi pegar onda deitada, sei da deliciosa sensação de baixar o bico da prancha de bodyboard com a mão e disparar na direção da areia. Ainda hoje, ficar de frente para o mar o dia todo, até o sol se por, sentir a pele esturricada de água salgada e sal são ideias de felicidade para mim. Gosto do barulho do mar, das estrelas sobre a água à noite, da espuma esbranquiçada na água escura sob a lua. Já dormi na areia da praia, com amigos. A noite era tão bela que não voltamos para a barraca. Apesar de verão, quase congelamos quando a areia perdeu seu calor. Desde então, entendo o frio dos desertos.
O filme que assisto é narrado por uma criança pequena, um menino. Durante todo o tempo me vejo agudamente consciente do contato que eles têm com o mundo físico, estão sempre mudando de país, cozinhando, pescando, surfando. O pai traz um peixe para o almoço e fala sobre o prazer de colocar comida na mesa. No último país que visitam, constroem uma cabana na areia da praia com a ajuda de uma grande família. Folhas de palmeiras trançadas, troncos finos de árvore. De onde vem essa gente tão estranha, de outro tempo?
Outro filme. As mulheres cozinham juntas numa cozinha imensa, as imagens do parque que cerca a casa me dão a impressão de sentir o cheiro da umidade no ar. Um personagem diz que o que importa é o que as mãos fazem, uma cadeira é o que fica. Não é verdade, nem no filme é, mas penso na maneira que vivemos agora, em que abandonamos quase por completo nossa existência física, incapazes de produzir qualquer objeto, nem mesmo nossa própria comida, incapazes de correr, de abaixar o corpo e tocar o chão, de identificar cheiros de fruta. Um mundo onde saber usar uma chave de fenda é quase como realizar mágica com uma varinha de condão. Vivemos na cabeça, ela lentamente se torna o único lugar onde percebemos a existência e toma todo nosso tempo. Temos orgulho disso, das ideias, das inovações tecnológicas, das descobertas que nos ajudam a viver mais e melhor. Mas tudo traz o seu contrário. Temos cada vez mais doenças de desconexão com a vida, a cabeça berra sem parar. Na tentativa de silenciá-la – tem que diga que o silêncio é a mais forte manifestação do divino – tentamos meditação, artes marciais, academia, ansiolíticos, corridas, a velocidade. O barulho, contudo, segue alto e constante.
Lembro de umas férias na praia com filho pequeno. Fiz muita comida, lavei roupa no tanque, fiquei semanas de short e biquíni, havaianas nos pés, e não lembro de ter tido muito tempo para olhar no espelho. Poucas vezes fui tão feliz.
Não vou voltar a esse mundo de pura existência, essa não sou eu, na verdade ninguém vai, tirando a família de surfistas. Não há mais como abandonar a curiosidade por outros lugares, outras pessoas, outras ideias. Não há mais como viver fazendo coisas. Mas como trazer equilíbrio a esses opostos – corpo e mente? Como voltar a encontrar o silêncio? 

Comentários

  1. Pra variar, bem legal ler tuas coisas! Bj

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  2. Muito interessante seu texto. Acho que é por causa dessas coisas que vivo assistindo Largados e pelados. A vida primitiva parece entranhada na gente. As vezes dá uma vontade louca de viver com os índios. Pena que a covardia mande a gente ficar quietinho até a vontade passar.

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  3. Me questiono o mesmo, Ines! Tenho tentado encontrar esse equilíbrio. Estar em contato com a Terra a partir da jardinagem tem ajudado nesse quesito. Reformar roupas ou objetos de casa também. :) Compartilho ainda do fascínio sobre o mar...♡ Fez lembrar um texto meu, vou procurar. Beijos

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    1. Tomara que você ache, Lívia, fiquei curiosa! Eu faço cadernos, é minha maneira de usar as mãos e, às vezes, até lavar louça é uma alegria.

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