Palácios da memória

Começo da noite, saio da estação da Luz com um certo receio de andar naquela região mas vejo que ainda há muita gente na rua, jovens, pessoas mais velhas, crianças que brincam alegres na praça, onde rola um ping pong.  Os preconceitos nos pegam, volta e meia. Chego atrasada à aula do Diversitas (Núcleo de estudos das diversidades, intolerâncias e conflitos) que acontece às quartas no Pessoal do Faroeste, na rua do Triunfo. A disciplina chama-se Lugar das memórias: preservadas, descartadas, compartilhadas e faz parte do programa de pós-graduação. Como acontece fora da universidade, tudo é diferente. Aos alunos regulares, que vejo assinando a lista de presença, junta-se uma massa de extras, curiosos. Havia sido convidada há semanas por um amigo, profundamente enfronhado na história.
As luzes estão apagadas, alguém exibe fotos de moradores de rua e imigrantes. Perco o contexto do que acontece, não sei porque as fotos estão sendo exibidas. Algumas são muito bonitas, vivas. Um casal ri, feliz, em um colchão colocado na calçada. O que nos surpreende destrói o que já foi pensado. À essas fotos, segue-se uma exibição de um livro da fotógrafa Nair Benedicto. São poucas páginas e relembram o período duro da ditadura, lá estão alguns dos que morreram. Ela conta que o livro é dedicado à uma amiga da filha. A moça tinha como pai um delegado do Dops e se matou aos vinte anos. Conta da prisão, fala sobre tortura e de como é otimista porque as coisas acontecem de maneiras inesperadas. Uma das presas recebeu uma mala de vestidos de festa. Difícil pensar em algo mais inútil na situação em que estavam. Para dar um sentido àquilo, elas improvisaram um desfile com as roupas. Consideradas à beira da insanidade pela diretoria do presídio, ganharam o direito ao banho de sol no dia seguinte.
Os professores – são três se complementando nas falas – discorrem sobre a memória, sobre como ela não está ligada aos fatos mas são compartilhamentos, situações em que não há verdadeiro nem falso. Lembro dos tais fatos históricos, como a cada época ganham significados diferentes. Alguém dá um exemplo de uma lembrança de infância que depois revelou-se não exatamente precisa. São memórias que me parecem dizer mais sobre nossos afetos do que sobre outras coisas. Ao longo da noite, os professores se complementam nas falas, muitas vezes mostrando diferenças profundas sobre como veem o mundo, o que contribui para acrescentar camadas e mais camadas nas possibilidades de pensar tudo aquilo.
No dia seguinte, fuçando em um site, caio em um texto sobre técnicas mnemônicas antigas, de povos sem escrita. Novamente a memória, em outro registro. Eu, que adoro ler e sou péssima para guardar qualquer coisa, acho fascinante a capacidade de guardar na memória tudo o que se quer. A autora, Lynne Kelly, é uma pesquisadora associada a uma universidade de Melbourne, na Austrália, e escreve sobre os palácios da memória. Já havia ouvido a expressão, sem ter muita ideia do que eram. Eles foram usados na Grécia por alguns oradores que desejavam guardar seus discursos com perfeição, para isso cada informação era associada a um detalhe de um edifício, ou de uma rua. Coisas parecidas faziam povos nativos na Oceania, da África, da América. Ela conta que um indígena americano era capaz de saber sobre todos os pássaros, répteis, mamíferos e plantas do lugar onde morava; povos filipinos identificavam mais de 1600 plantas; aborígenes australianos eram capazes de cantar mais de 800 quilômetros de seu ambiente, com a localização de tudo ao redor que pudesse ser importante. Há histórias associadas a estrelas e a peças de madeira entalhada, enfeitadas com penas e contas.
Tudo parece improvável demais para mim e para a autora. Incrédula, ela decide usar a técnica para guardar as informações sobre os mais de 400 pássaros do estado onde vive, e descobre que funciona.
Definitivamente me sinto uma pessoa de poucos recursos, incapaz de ser uma biblioteca viva. Lembro das besteiras que foram ensinadas nas escolas sobre apenas os povos que têm escrita, terem história. Penso no que significa a morte de um idoso que ainda domina essas técnicas ou no que perdemos com o desaparecimento de um povo indígena, na infinidade de conhecimento que os povos do ocidente destruíram por não serem capazes de “ler”. E no quanto uma enorme pesquisa sobre tudo isso – sobre essas memórias - ainda pode nos ensinar sobre o que significa ser um humano na face da Terra.

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