Eu
engulo o mundo lendo, tenho uns cinco livros começados, sendo devorados
no paralelo. Coisas de geminianas, dizem, coisas de voracidade descontrolada.
Passo do romance para o livro do psicanalista, vou para o policial, leio um
poema, vou para nem sei bem mais qual. E ainda tem a internet. Hoje cedo li o
texto do Anderson França sobre a pesquisa que levantou a expectativa de vida na
cidade de São Paulo e achou uma a diferença de 24 anos entre quem vive no Jardim
Ângela e quem vive nos Jardins. A raiva dele é tão fenomenal que me sinto uma
uva passa amassada, tenho vontade de dizer algo, perguntar o que fazer, mas sei
que não é essa a questão. Não tenho como mudar isso sozinha. E, por favor, não
me digam que temos que ir para a rua, a encrenca no momento é muito maior. Mas
me pergunto – como não explode tudo? Como a vida segue seu normal anormal como
se essa diferença fosse algo possível de ser aceito?
Com
isso na cabeça, pego o livro da Arundhati Roy, o Ministério da felicidade absoluta. A personagem principal é uma
hijra, uma mulher trans. Leio seis páginas e tenho vontade de ligar para alguém
para ler aquilo em voz alta, leio para mim mesma em voz alta. É tão bem escrito
que dói. E é como uma patada de onça estraçalhando alguém que ameaçou seus
filhotes. Está tudo lá, o lirismo, a miséria absoluta, a ganância, o massacre
da globalização que gentrifica as cidades para benefício dos ricos, o uso da
luta contra a corrupção para colocar os mesmo no poder (sim, também na Índia
tem dessas coisas). Tem tudo o que eu
invejo nos melhores escritores, beleza e força. Não consigo ler mais, não sei o
que fazer com tanta dor.
Noite,
sigo com o grupo da pós-gradução que frequento como penetra. Eles visitam a
Casa Florescer, de acolhimento às mulheres trans em situação de
vulnerabilidade. Chegamos no meio do ensaio de uma peça, ficamos um tempo como
dois grupos muito diferentes, uns olhando os outros, sem saber como começar a
conversa. O coreógrafo nos bota para fazer uma dinâmica, depois tem chá, bolo
de laranja e as rodas de formam. Quando vejo, estou conversando com C. Pergunto
a ela espantada – é verdade que essa é a única casa desse tipo no Brasil? Sim,
é a única. A ÚNICA! Ela me conta que trabalha numa seguradora. Pergunto se mora
na casa e ela diz que sim. Percebe que não estou entendendo muita coisa porque ela
é a única entre todas a não estar vestida de uma forma ostensivamente feminina.
A minha história é um pouco diferente das outras, diz, a questão da sexualidade para
mim é mais interna. Já me travesti mas tive muita experiência de violência e
preconceito e hoje me visto de uma maneira mais neutra, até por causa do
trabalho. Tenho vontade de pedir desculpa pela minha ignorância, tenho vontade
de sentar num bar e conversar com ela noite a dentro. Um pouco depois converso
com T. numa roda. Ela conta a vida, o uso de drogas, os programas, o tratamento
de uma DST, o trabalho como agente de saúde. Não consigo tirar os olhos dela,
do rosto lindo e delicado, da pele de propaganda de creme de beleza, perfeita.
Ela me mostra a casa, a administração, a cozinha, a sala onde se reúnem, os
quartos com beliche. Fumamos juntas um cigarro e ela me conta espantada ter
conversado com uma jornalista soropositiva. Percebo que até então, para ela,
isso era algo restrito ao povo dito de risco, como se houvesse uma divisão
feita pelo dinheiro. Conto dos colegas de trabalho que perdi no começo da Aids,
vejo os rosto deles na minha frente, falo dos soropositivos que conheço, ela
escuta, surpresa. Nos despedimos com um abraço, ela quer saber se vou no sarau de
sexta-feira, digo que não sei mas quero ver o espetáculo em dezembro.
No
jantar, eu e meus amigos conversamos, em todos a mesma sensação – se as coisas
seguirem assim, isso aqui vai explodir. Volto ao início do dia, falo para eles do texto
do Anderson França.
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