Urubu vermelho

Talvez porque o Natal se aproxima, o final de ano, e junto com isso as emoções e sentimentos tornam-se mais intensos, lembro de fazer algo que devia ter feito há um ano – copiar para o notebook os filmes que fizemos com meus tios do coração, os melhores amigos dos meus pais. São dois filmes de pouco mais de hora e meia em que contam o imenso desejo de fazer um mundo melhor, num tempo em que havia ditadura e que qualquer trabalho que buscasse mudança era visto como coisa de comunista que comia criancinha. Não resisto e assisto o começo de um deles. Um dos tios conta que meu pai era sempre o último a atender seus pacientes porque era pediatra e com as crianças tudo era mais demorado. Conta também que quando ele via que os pais não tinham dinheiro para o remédio, ele colocava uma nota no meio da receita. Uma das tias lembra uma dissertação de mestrado que, tabulando dados médicos da cidade pequena, constatou que quando meus pais tiravam férias, a mortalidade infantil ali aumentava. Chamo meu filho para ver esse trecho, é do avô que ele não conheceu que falam. Receio que ele ache chato, mas ele escuta, quieto.
Enquanto mostro trechos do filme para ele, uma das minhas irmãs coloca fotos no grupo de whatsapp. São de uma Unidade de Pronto Atendimento que foi reformada e ganhou o nome de Eliza Pinheiro Mendonça, minha mãe. Coincidências, sempre elas. Dão uma força imensa a tudo.
No filme, um dos tios fala para não termos medo de ser urubu vermelho – aquele que é diferente do bando, e que por isso é rejeitado. Não precisaria nem pedir. De certa forma, todos nós, os filhos deles, somos um tanto estranhos. Entramos em confusões, brigamos, temos um sentido de justiça um pouco distinto da média. Não é uma medida de qualidade humana, talvez sejamos péssimos em outros aspectos, mas é uma marca.
Ainda hoje, quando volto àquela cidade, sou parada por pessoas que conheceram meus pais, que se trataram com eles. E faz mais de quarenta anos que saímos de lá. Sempre me impressiona alguns dizerem eu amava sua mãe, eu amava seu pai. E choram. Não era uma relação estritamente profissional, os afetos se embrulhavam em tudo. Lembro mais uma história do meu pai. Meia-noite, brincávamos na rua, devia ser férias, havia primos e tios em volta, e chegou uma cliente dele, filho no braço. Ele atendeu no portão mesmo, onde estava. Examinou a criança e disse que ela precisava levá-la ao pronto-socorro. Na minha memória era algum problema respiratório. Assim que ela se foi, perguntei com uma certa raiva porque ele tinha atendido, ela era uma paciente que vivia atrás dele, brincávamos que ele era a única pessoa no mundo em que ela confiava. Por que ela não foi direto para o pronto socorro? Por que você atendeu? A resposta foi simples – porque ela é mãe, tem medo de perder um filho. Não era um argumento profissional, era do domínio da empatia, essa palavrinha que entendemos tão pouco.
Olho para as pessoas que eles eram e parecem saídos de outro mundo, incompatível com o que vivemos agora. Ao mesmo tempo, busco não esquecer nunca essa solidariedade constante que praticaram. Funcionávamos como uma única e grande família, transitando entre as casas, morando uns com os outros quando precisávamos, apoiando uns aos outros com dinheiro quando era o caso. Família é quem dá amor, não precisa ser de sangue, já foi assim com esse grupo.
Hoje li que um quarto dos trabalhadores do Silicon Valley correm o risco de passar fome. Muitos moram em carros porque não têm dinheiro para pagar uma casa, qualquer tipo de casa. É uma das regiões mais ricas do país mais rico do mundo. A utopia dos meus pais, tios e tias continua piscando o olho para mim, logo ali no horizonte.

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