Cachaça e exorcismo


   

Perto de casa, uma loja construiu um banco entre árvores. É a calçada mais generosa da região: o banco tem tomada para recarregar celulares e wi-fi, ao lado há um lugar para parar bicicletas e sempre há duas tigelas com água fresca para quem passeia com os cachorros. Hoje, saí de manhã para comprar umas coisas e havia um rapaz sentado no banco. Não é muito comum ter alguém lá por muito tempo mas este estava instalado, percebi pelo som de uma pequena caixa quadrada de onde alguém gritava “sai demônio”. Do outro lado da rua, vi o rapaz erguer os braços e segui. Fiz minhas coisas, demorei uma hora, pelo menos, e quando voltei lá estava ele, sentado no banco, o rádio ligado alto naquele exorcismo, naquela luta com o mal.  A minha sensação interna nessas horas é de estar vendo o máximo de exploração possível, imagino as notas caindo no colo que alguém que promete a outro alguém que a vida vai melhorar desde que ele pague para mandar os demônios embora. E quem não tem sua coleção de demônios? Dessa vez cruzo a rua para passar na frente do rapaz. Ele é grande, forte, muito jovem. A roupa, bem velha, e nos pés umas sandálias quase destroçadas. Ao lado, uma garrafa de cachaça barata pela metade. No rádio o pregador continua afastando o mal, ele presta atenção, ali estão seus apoios – a cachaça e o exorcista. As dores devem ser grandes e persistentes.  
Volto à madruga de sábado passado. Duas da manhã, saio do teatro de Contêiner, na rua dos Gusmões. À minha volta, na calçada, dormem dezenas de pessoas, envoltas em seus cobertores sem cor. O carro do Uber para do outro lado da rua, em frente ao Atende do programa Redenção. Jogo um beijo para um dos amigos com quem estava e corro para o carro. O motorista sai e começamos a conversar. Digo que tinha receio de não conseguir ninguém, que tivessem medo de vir para aquela região, naquele horário. Ele diz que só veio porque tenho uma avaliação boa no aplicativo. Seguimos falando sobre os usuários de droga e ele me surpreende por não tratá-los como vagabundos, como lixos. Ele me diz, meio receoso da minha reação, ter pena. Concordo com ele, quem desejaria uma vida daquelas para si mesmo? Falamos sobre os vícios, como são difíceis de largar, mesmo que sejam legais. Conto de alguém que conheço que lutou muito para largar a cocaína, que quase perdeu tudo no caminho e, estranhamente, conseguiu sair. Ele faz uma pausa. Não conto isso para muita gente mas eu também já fui usuário, diz. Trabalhava com eventos, via todo mundo cheirando e comecei a usar também. Quando eu vi, não conseguia juntar mais dinheiro algum. Não cheguei a roubar, mas pedi muito dinheiro emprestado, não havia dinheiro que chegasse. A minha sorte é que eu não usava em grupo. Comprava, ia para casa, me trancava no quarto e usava. E como você parou, pergunto. De um dia para o outro. Comecei a ir para a igreja, a orar e parei. Hoje estou casado, tenho minha casa, esse carro.  Não tenho filhos ainda. Ele me deixa em casa e fico pensando em como as igrejas, sejam elas quase forem, continuam sendo uma casa para tanta gente que precisa esquecer algo, suprimir alguns demônios internos que seguem berrando. Hoje li que o trabalho do esquecimento é duro, consome toda a energia da pessoa, não sobra nada para criar uma nova vida. O exorcista e a cachaça são tudo o que o rapaz na calçada tem para continuar a esquecer.

Comentários

  1. Puxa Inês, muito legal esse seu texto. Sabia que o Chico Xavier dizia isso mesmo? Que a vida de alguns é muito dura e que precisam da cachaça para aguentar.

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  2. Ainda bem que ainda existe igrejas que olham para o ser humano e deseja ajuda-los pregando o vedadeiro evangelho, ainda existe aqueles que não se corrompem e faz valer o mandamento de Jesus que é amar o próximo como a ti mesmo. A verdadeira igreja ainda é uma instituição restauradora de vidas e instrui domar o mal q existe em todo ser humano.
    Lindo texto .. Como sempre.

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