Diálogos internos


Quarta à tarde, sentada no chão da sala.
Fuço os livros da estante baixa, aleatoriamente. Abro Um outro amor, de Karl Ove Knausgard e leio:
“O momento de agir. Em outras palavras, agir ou não agir. É o mesmo classicismo de Hamlet. O dilema entre ser participante ou apenas um observador da própria vida.
— Em que categoria você se encaixa?”
Observadora, respondo para mim mesma. Sou capaz de observar até mesmo a maneira que o pé de alguém toca no chão: calcanhar em direção às pontas? Lateral externa do calcanhar, diagonal para dedões? Pontas dos pés, calcanhar mal tocando o solo? Pés abertos como nadadeiras de pequenos peixes?
Gosto de fazer, adoro a energia de trabalhar junto, mas o fazer na quinta marcha me enlouquece. Preciso parar e refletir.
Quarta à noite, na rua.
A calçada em frente ao Faroeste está agitada. Antonio trouxe a moldura que utiliza em suas performances e Marcelo, morador da região, quer ser fotografado com todos e me chama para ficar atrás da moldura com ele. Quando vejo estou rindo e pedindo para Lívia nos fotografar. Eu, a que não gosta de ser fotografada, a que fica dura quando vê um celular ou uma câmera, estou me divertindo, completamente à vontade. Lembro o que diz Eleonora Fabião no texto que mal comecei a ler: “Esta é a potência da performance: deshabituar, des-mecanizar, escovar à contra-pêlo”.
Quarta à noite, dentro do teatro.
Hoje é dia de escutar. Como pensar sobre o que vivemos aqui? Escuto e anoto um tantinho, não tão bem quanto deveria, claro.
Zilda fala sobre a história da cidade. A cidade do automóvel joga a população para fora, se periferiza. Os empresários se apoderam de grandes terrenos às margens das rodovias. As populações trabalhadoras precisam seguir as fábricas e perdem o direito à cidade. As fábricas operando no sistema fordista concentram milhares de trabalhadores, aumenta a organização operária. Empresários se endividam para mudar para o sistema toyotista, para se adequar às novas tecnologias. Menos trabalhadores, mais dificuldade em sua organização.
Galeão diz que na Zona Sul, a população chegou antes da cidade. Quando não há cidade, não há direitos, não há serviços públicos, e os terrenos são mais baratos.
Lembro das manifestações em 2013, os ônibus queimados para choque de muitos. Sempre estranhei que não fossem queimados constantemente. Qual é a qualidade de vida de quem fica seis horas por dia dentro de ônibus, metrôs e trens lotados? Por que nos concentramos tanto nas reivindicações salariais e falamos tão pouco sobre o que a cidade deveria dar para todos?
Sérgio lê sua aula, algo pouco habitual mas a costura de tudo só é possível nesse formato.
Algumas anotações: o capitalismo valorizou excessivamente a subjetividade e levou ao individualismo. Mas não há o um, há sempre pelo menos dois (pense na mulher grávida).  
Lembro de alguém que volta e meia me diz: só somos humanos porque existe o outro, Inês.
A grande questão é a da sobreposição dos espaços (Sloterdijk). A experiência da caminhada entre o Mungunzá e o Faroeste.
Penso que essas situações em que circulo com muita gente por um território sempre me incomodam, sinto estar invadindo o espaço alheio. Será que fica claro que não estamos com olhares de visitantes de zoológico? Michele questionou, eu tive vergonha. Mas paramos a geral da PM.
Sérgio continua, a grande descriminação é a cultural. Houve um apagamento das culturas negras e indígenas. Precisamos valorizar o saber oral para sairmos disso.
Lembro do texto do Galeão, junto com Bernardo Parodi Svartman: Comunidade e resistência à humilhação social. Recortei de lá quase literalmente:
Humilhação social é a humilhação crônica sofrida pelos pobres e seus ancestrais, indica a exclusão de uma classe inteira para fora do âmbito intersubjetivo da iniciativa e da palavra. É também um fenômeno psicológico porque a humilhação social conta como uma modalidade de angústia disparada pelo enigma da desigualdade de classe.
Junto isso com o apagamento cultural e com milhares de pessoas em seus divãs. Todo o sofrimento psíquico é exclusivamente pessoal? Tudo o que sofremos é exclusivamente econômico? Como tecer todos os fios do sofrimento?
Penso na entrevista com a escritora Siri Hustvedt que vi dia desses. Ela diz que os bons romances são muito complexos, lidam com as ambiguidades da experiência humana no lugar de reduzí-las a um slogam. Complexidade, olhar por muitos ângulos, nas diferentes camadas.
Andei muda esse semestre, talvez tentando achar meu slogam. Com a sensação de que preciso fazer muito mais, me sentindo um gato dentro do saco. Culpa por não ser militante, ativista, por não sair fazendo. Culpa por querer fazer sem saber o quê. Começo a perceber que o que sou também pode ser resistência.






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