Terço


No avião, de volta para casa, chego à minha fileira. Minha poltrona é a da janela e um casal idoso já está sentado em seus lugares, barrando minha passagem. A mulher pergunta: é o seu lugar? Diante da minha afirmativa, diz que estavam me esperando. O marido se levanta e ela, na poltrona do meio, pergunta se consigo passar pelo espaço entre as pernas dela e o banco da frente. Consigo, se você não se incomodar se eu esbarrar nas suas pernas. Não, você é magrinha. Não é verdade, mas entendo o que quer dizer. Passo e me espremo no meu lugar, a única coisa possível de ser feita em um espaço tão pequeno. Ela veste uma camiseta cheia de borboletas, com bordados de lantejoulas por cima, o cabelo claro preso numa presilha. Mal me ajeito e ela começa a conversar. Quer saber meu nome, o que faço. Você é artista? Não, trabalho com livros. Achei que você fosse atriz, você tem muitos livros em casa? Tenho sim. Eu também, tenho livros na sala, nos corredores, até no quarto de hóspedes. O que você gosta de ler, ela pergunta. Romances? Sim, gosto de ficção e poesia. O que mais? Psicologia, filosofia, qualquer coisa ligada a ciências sociais. Em algum ponto da conversa, percebi um terço enrolado em seu pulso. Me veio à cabeça a imagem de alguém muito religioso e conservador, o que fez minhas respostas ficarem mais curtas, ressabiadas. Sou assim, custo a me expor, especialmente se imagino que a pessoa vá me achar muito estranha.
Ela pede que eu tire uma foto deles, o que faço, e ela tenta mandar a imagem por whattsapp para alguém. Estavam viajando para comemorar 48 anos de casados. Diante de meu espanto, acrescenta, e mais oito de namoro. O avião está prestes a decolar e ela precisa guardar o celular. A conversa continua. Conta ter feito filosofia, direito e psicologia. Olho para aquela senhora faladora, surpresa. Na minha caixinha interna ela era uma dona de casa. Ela segue: comecei com filosofia, meu pai me perguntava o que eu ia fazer com isso. Então fiz direito também, que era o que ele queria. E como psicóloga, trabalhei com terapia familiar.
Ao longo da viagem, conversamos mais um pouco durante o jantar e o café da manhã. Ela conta ter sido sempre a que questionava tudo no trabalho, e que isso era resultado de ter estudo filosofia. Em algum ponto, emenda com uma crítica da reforma trabalhista. Diz que que tentam nos fazer acreditar que o capital produz os bens do mundo mas que isso é completamente errado, quem realmente produz as riquezas é o trabalho, são as mãos do trabalhador. De manhã fala sobre um documentário sobre um ativista gay que o marido assistiu no avião e que era muito bom. A gente precisa se informar sobre os que são diferentes de nós, diz ela, ou nos afastamos uns dos outros. Conta que tem um primo gay, artista plástico, que foi passado para trás pelo companheiro na separação e hoje está doente, com Parkinson. Amo meu primo, tenho várias telas dele em casa. Ele morou em Paris um tempo, então passei uma mensagem para ele de lá. Ela fala de racismo, sobre como, algumas vezes, alguns negros reproduzem o comportamento dos brancos. Como as mulheres que facilitam a vida dos filhos homens e exigem mais das filhas mulheres? Exatamente, diz ela. E há mulheres que não gostam dos filhos. A gente tem que ser capaz de entender tudo isso ou não consegue ser terapeuta familiar. Conta que dava aulas sobre libido aos alunos, e que adorava dar aulas para adolescentes porque são desafiadores.
Quando estamos quase chegando em São Paulo, ela começa a procurar o celular e não acha de nenhuma maneira. Revira a bolsa, tira tudo de dentro, faz o marido levantar para olhar no chão, pede ajuda a uma comissária, fala com um dos rapazes da fileira da frente. Ri de si mesma e me diz, agora você pode escrever um texto sobre isso quando chegar em casa. Me assusto, como ela sabe que gosto de escrever? Em nenhum momento falamos sobre isso. O avião pousa, eles abrem caminho para que eu possa descer, e ficam para trás. Nos despedimos e percebo que ela se vê pelo meu olhar como uma velha meio amalucada. Quando estou uns metros à frente, ouço exclamações. Encontraram o celular, dentro de bolsa que havia sido tão revirada. Fico contente por ela e meio triste por mim. Aquele terço no pulso fez com que eu a colocasse embaixo de uma etiqueta que afinal, não representava absolutamente nada de quem era ela. Quantas pessoas abandonei pelo caminho por razões semelhantes? O preconceito nosso de cada dia, evite hoje. L., escrevi o texto, foi bom te conhecer.

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