Sexta
passada ajudei em uma festa junina, fiquei na árvore dos desejos. No chão, muitas
bacias com fitas de cetim colorido – azul, rosa, amarelo, dourado, verde,
laranja e outras mais. Quem quisesse podia pegar uma, escrever o desejo à
caneta e pendurar em uma estrutura de círculos de tamanhos diferentes para
formar a árvore. No final, ela estava linda, com suas fitas flutuando no ar. Estar
tão próxima assim dos desejos de muita gente só confirmou o que se sabe: todos
queremos mais ou menos as mesmas coisas. Amor, sempre, em primeiro lugar, seja do
companheiro, da família, ou encontrar o amor que ainda não veio. Há outros
desejos não materiais – paz, saúde – e outros materiais bem práticos, como casa
e dinheiro.
No
mundo onde as ideias andam tão importantes, onde o que se pensa-sente tem um
peso tão grande para que aceitemos ou rejeitemos alguém, gosto de perceber as semelhanças,
para não esquecer isso quando o lado emocional resolve ver a outra pessoa como
um Outro totalmente distinto, quase um não humano.
Nessa
região, conheci muita gente e algumas delas desmontaram ideias que eu
tinha. B. por exemplo, é artista plástico. Sei que houve uma exposição de suas
obras no Sesc Bom Retiro e que ele deu uma oficina lá. Vi só uma de suas telas.
Um dos trechos me tocou: no canto esquerdo, na parte inferior da pintura, há um
grupo de pessoas em pé. Eram pequenas manchas de cor, mas também eram homens e
mulheres negros. Manchas de cor ou pessoas?
D.
foi meu colega da disciplina do Diversitas. Um dos mais falantes da turma,
nunca tem receio de dizer o que pensa. Muitas vezes ia tão direto ao ponto que
deixava todo mundo com a pergunta na cabeça – como não pensei nisso antes? Uma
das propostas: por que não levamos essa criançada da Luz para conhecer a USP?
Elas precisam saber que a USP existe, e que elas podem chegar lá. Lembrei do
filme Nunca me sonharam. Ele tem
mudado muito a própria vida e ainda é generoso o suficiente para andar sonhando
muita gente.
F.
é poeta, tem um domínio imenso da língua, leu para a gente um texto que era um protesto
político em que só usava a letra C. Não chego perto do que ele é capaz
escrevendo. Mas sei que a vida anda difícil, que a vida deu ruim, segundo ele.
Depois,
no dia da festa, conheci H. em um bar. Jovem, bonito, doce, um sorriso delicioso. Sabia de cor um
monte de músicas do Clube de Esquina, de Milton Nascimento. Nós estávamos
dentro e ele na calçada cantou muito, enrolado em um cobertor novo, que havia
comprado recentemente. Quando fomos embora, nos acompanhou até o carro. Enquanto meus amigos pararam para comprar um suco, me disse “eu queria outro afeto,
outro tipo de afeto”. Uma carência imensa.
Essas
pessoas têm em comum uma coisa: habitam a região da Luz, são usuários de crack.
Todos eles? Possivelmente, melhor deixar assim. H. e B. têm problemas mentais
nítidos, às vezes o que falam foge do que consideramos que seja a realidade. Todos
passaram por coisas terríveis nessa vida, as coisas que nos levam a tomar um
porre, nos entupir de comida, de remédios tarja preta, de desespero. E me ensinaram
ou confirmaram algo que eu intuía. Aqueles zumbis dos comentários das redes
sociais não existem. O que há é uma imensa potência de vida desperdiçada, sem
meios para se exprimir no seu máximo, no seu melhor. Tenho receio por eles,
especialmente pelos mais frágeis. Tenho medo de receber a notícia de que um
deles foi morto em um dos confrontos que acontece na região da Cracolândia.
Doeria muito porque para mim não são mais uma questão social, são individualidades
poderosas com quem aprendi, por quem tenho afeto.
A
festa junina aconteceu na rua Helvetia, na boca do fluxo. Vi uma mulher abaixar para pegar o
cachimbo de crack que caíra no chão quando foi colocar um pedido na árvore dos
desejos. Ouvi uma criança dizer que o maior desejo era encontrar a mãe. Ouvi homens
dizerem que o maior desejo era que suas mulheres não ficassem viúvas e uma mãe escrever
que o que mais queria era voltar a ter a guarda do filho. Vi mulheres pedindo
para outra pessoa escrever porque isso é algo que não sabem. Eu mesma escrevi em algumas fitas. Em alguns momentos
foi impossível não chorar. Esse texto é para que quem lê, saiba da imensa vida
que habita aquele lugar e da imensa necessidade que dirige a vida daquelas
pessoas. Devo isso a eles.
Inês querida, sua sensibilidade conversa com a minha. Fico feliz por ter permitido que essas histórias te tocassem, de saber que você seu olhos e ouvidos desarmados e a(l)mados para elas. É assim que fazemos a luz pulsar. ♡
ResponderExcluirLívia, tem sido uma experiência tão importante! É preciso ver as pessoas e não ser tomado por ideias que são só fantasmas.
ExcluirQue lindo texto, Inês! Que emoção ler você! Pena que não pude comparecer na festa, porque fraturei a perna.
ResponderExcluirQue linda retrospectiva, de um de aprendizado tão intenso e coletivo... Eu sou muito grata, de assim como você, ter tido a oportunidade de aprender tanto com essas pessoas que agora fazem parte de nós. Um abraço forte.
Deisy, tem sido muito bom perceber tanta gente sentindo de uma maneira parecida. Boa recuperação! Beijo.
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