Para mim hoje foi o dia mais bonito do
inverno, céu azul forte, sem nuvens, e aquela luz suave que só aparece quando o
sol faz uma trajetória mais próxima do horizonte, evitando as alturas. Saio com
um amigo, almoçamos no Bom Retiro, em um boteco minúsculo: mesa na calçada, ao
sol, feijão preto, ovo frito, fritas. Parece estranho gostar tanto de uma refeição
dessas? A combinação de arroz, feijão e ovo frito está entre as grandes
refeições que já fiz na vida. Há muitos anos fui acampar com amigas em Visconde
de Mauá, em tempo de chuva. Demoramos demais para chegar lá, a estrada de terra
molhada dava um certo medo. Lá em cima, o almoço do dia havia acabado, sobrara
arroz e feijão e a senhora que cozinhava disse “posso fazer ovo frito para
vocês”. Assim foi, comida de fogão a lenha, provavelmente feita com banha de
porco, zero ponto no manual de comida saudável, milhões de pontos de prazer, um
dos melhores almoços da minha vida.
Próxima parada, largo general Osório. íamos
fazer lá algo que não deu certo, então apenas observamos o trabalho que estava
sendo feito, as pessoas que circulavam. As mesas da praça estavam cobertas com
maquiagem, esmalte de unhas, canetas e lápis de cor, papéis, parte de uma ação
organizada por C., todos os sábados. Uma mulher senta à minha
frente, do outro lado da mesa. Não tem dentes na frente e os outros estão
totalmente podres. Ela pega um colar e uma das moças pergunta se ela gostou.
Ela devolve e responde “eu gostaria no tempo em que eu era gente”. Pega um batom
rosa claro e aproxima dos lábios, sente o cheiro e devolve. Vai embora, outra mulher tão magra quanto se aproxima,
pele de um dos braços suja, cabelos muito curto. Ela me parece tão acabada que
tenho dificuldade em olhá-la. Em umas das araras num canto da praça achou uma blusa
colorida com umas flores aplicadas. Tira a blusa que veste, os seios minúsculos
embaixo do sutiã expostos nesse dia de sol frio, e prova a outra. Fico pensando
nos guardiões da moral vendo a cena. Será que se chocariam com o estado em que ela se encontra? Ou com a troca de roupa? Nessas horas falar
que somos responsáveis por nossas escolhas me parece tão tolo quanto acreditar
que podemos ser o que quisermos, ou que todos temos chances iguais na vida. Frases
ótimas para nos fazer sentir culpa individual e boa também para tirar a
responsabilidade coletiva pela maneira que vivemos no mundo. Lembro de um
texto que li: “Comunidade
e resistência”, de Bernardo Svartman e Luís Galeão. Lá estava: “Nessa
confluência de novos atores e lutas políticas, os psicólogos são confrontados
com a necessidade de melhor compreender sofrimentos que são politicamente determinados,
ou seja, gerados por situações de dominação ou opressão social”.
Meu amigo se aproxima de um
garoto que desenha, me afasto um pouco e quando volto o menino está escrevendo.
Vejo que ele está fase em que a criança escreve espelhado, da direita para a
esquerda e com as letras invertidas, o que me surpreende, ele parece ter uns
nove ou dez anos. Depois que ele se vai com a tia, meu amigo conta: ele me disse que é
cigano, já passou por muitos lugares, e não sabe ler e escrever. Ali,
no centro da cidade de São Paulo, nesse lindo dia de inverno.
Fim do dia, volto para casa.
Deitada na cama, embaixo das cobertas, assisto à um vídeo sobre um homem idoso
que mora numa casa-barco chamada Gipsy-Rose, na Nova Zelândia. A água que usa é
da chuva, a eletricidade vem de painéis solares, o banheiro é do lado de fora. Seu
quarto tem uma cama de solteiro embaixo da janela e ele tem um quarto de hóspedes.
Fala da preocupação com o planeta que vai deixar para os netos, fala da família
e dos amigos. Conta que quando a maré sobe, ele vê acima da copa das árvores do
mangue, que anda de caiaque e nada naquelas águas no verão. Diz esperar a morte
e não ter medo dela, e apreciar o silêncio. Ele foi um mímico quando mais jovem,
agora há algo de velho monge sábio nele. Tenho vontade de ouvi-lo por horas, assombrada com o que cabe no mundo.
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