Resolvo arrumar prateleira do armário onde
guardo brincos, colares, anéis. Há muita coisa, não jogo nada fora a não ser
que quebre irremediavelmente. Meu lado acumulador se manifesta aí e nos livros
que trasbordam das estantes. Abro umas das caixas e lá está um pequeno vidro de
remédio cheio de areia laranja do Saara. Ele sobreviveu a vinda para São
Paulo, às mudanças de casa, e sei que se sumir ou quebrar vou chorar como criança.
A areia me faz lembrar da sugestão de R. para escrever sobre os irmãozinhos de
Foucauld.
Meus pais eram católicos assim como seus
melhores amigos. A ligação do grupo foi tão forte que ainda hoje nós, os
filhos, somos mais próximos dessa família por afinidade do que da família de
sangue. Embora ainda houvesse muito da velha religiosidade do certo e do errado
e da repressão, havia também muito da teologia de libertação que pregava não
ser possível fechar os olhos para os que tinham menos, para os que passaram
apuros, para os doentes. Um desse tios queridos conta do meu pai colocar
dinheiro junto com a receita quando sabia que um remédio não disponível no
posto de saúde era essencial para a criança que atendia e que os pais não
tinham como comprar. Repito essa história muitas vezes porque sintetiza bem o
que eles eram, e o que os que estão vivos ainda são. O espírito comunitário era
(é ainda) forte nessa família: morei com tios no início do então colegial,
alguns desses primos moraram na casa dos meus pais, meu pai e minhas irmãs
moraram com outros tios numa fase de mudança de cidade. Quando vejo as discussões atuais sobre
família ser formada por amor e não sangue ou papel, quase me assombro, sempre
vivi assim. No meio desse envolvimento com uma espécie de catolicismo
militante, conhecemos muitos religiosos, de diferentes ordens, de diferentes países.
Os irmãozinhos de Foucauld fazem parte dessa
maneira de viver. Uma lembrança de um deles, de quem
não lembro o nome. Estamos na casa dos meus tios, vizinha à dos meus pais.
Tenho uns quinze anos. Ele havia chegado dos Camarões, onde havia morado um
tempo. As luzes do cômodo estão apagadas e ele passa slides das pessoas que
conheceu, com quem viveu. É a primeira vez que vejo pessoas com escarificações,
as marcas feitas na pele para que se formem queloides e que servem de
indicações de pertencimento a um grupo. Ele explica como é feito, não há
crítica, não há um tom de “que absurdo”, só um respeito enorme pelos “irmãos do
Cameroun”, dito a moda francesa. Lembro de ter ficado fascinada por aquele povo
e sua pele desenhada. Depois ele, que também era padre, rezou uma missa na sala
da casa, o pão era pão e o vinho, vinho. Das muitas missas a que fui na vida, é
a única da qual lembro algo.
Outro irmãozinho era o Henri. Diziam que ele
era um irmão vagabundo, sem parada fixa. Não sei muito bem o que significa,
lembro que ele usava roupas muito gastas, viajava praticamente sem bagagem e
que quando aparecia, esperava pelos meus tios num banco da praça em frente,
sentado tranquilamente. O aspecto de vagabundo impedia que a senhora que
trabalhava na casa tivesse coragem de deixá-lo entrar. Sabíamos também que era
de uma família francesa rica que não havia ficado muito feliz com sua opção.
Chico foi o que conheci melhor. Ele sempre
foi apenas Chico para todo mundo, nunca Irmão, ou senhor, hierarquia zero. Foi
o primeiro adulto a me tratar como um igual e não uma pessoa menor, que ainda
tinha muito o que aprender. Ele havia abandonado a medicina para se tornar
pedreiro. No período em que morou em São José, lembro de uma vez em que ele
estava trabalhando em uma casa perto de onde morávamos. Um dia, na volta da
escola, paramos para vê-lo, um bando de adolescentes curiosos. Ele assentava
azulejos e mostrou como fazia, a importância da parede estar perfeitamente
aprumada, do intervalo entre os azulejos ser sempre o mesmo, do alinhamento
entre todas as peças. Aprendi com ele nesse dia como era difícil de fazer, como
exigia capricho, técnica. Era como um médico explicando uma cirurgia, o mesmo
orgulho. Lembro de perguntar para minha mãe se ele falava de deus para os
outros trabalhadores, se tentava convertê-los. E resposta dela, eles não vão
nem saber que ele é religioso, só se perguntarem.
A casa em que morava ficava um bairro
operário. Eram três cômodos, um por onde entrávamos por uma porta central e
onde havia duas camas de solteiro encostadas às paredes, a cozinha à direita e
outro cômodo à esquerda, uma espécie de sala de visitas/capela, com uma imagem
entalhada na parede e onde sentávamos no chão. Fui algumas vezes lá. Chico
acendia um incenso de rosas que tirava de uma embalagem vermelha meio
transparente, todo mundo ficava em silêncio e era tudo. Nunca o ouvi falar a
palavra pecado.
Duas outras lembranças. Ele passara algum
tempo na Argélia, onde a ordem surgiu, e voltou com pedras e uma garrafa com a
tal areia do Saara. Fiquei enlouquecida com a cor de laranja, não sabia que o
deserto podia ser assim. Ele sorriu e disse para eu arranjar um lugar para
guardar que ele me dava um pouco. Daí veio meu vidro do começo desse texto.
Junto ganhei uma pedra da mesma cor que também ainda está comigo.
Outra lembrança, talvez da penúltima vez que
o vi. É domingo e volto para São Paulo, tinha aula na ECA no dia seguinte.
Encontro com ele na rodoviária e viajamos conversando: a situação do país, a injustiça
social, a ditadura, como eu estava me virando em São Paulo, o que fazia, como andava a
vida. Na despedida, ele me diz sorrindo, da próxima vez quem sabe a gente conversa
tomando uma cachacinha.
Hoje ele tem por volta de noventa anos e um
pouco de demência. Minha prima que ainda convive com ele diz que ele é um
velhinho de bem com a vida. A última vez que o vi, há uns seis anos, talvez,
ele ainda me reconheceu e eu ainda tinha a mesma vontade que sempre tive, de
ficar ao lado dele, só aproveitando a aura de paz que sempre senti quando ele
estava por perto.
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