É preciso amar as pessoas


Carregando uma bolsa e uma sacola que parecem pesar toneladas, levanto do banco do metrô para descer na estação Fradique Coutinho. Meu reflexo no vidro da porta é o de um fantasma, o batom foi embora há tempos, o rosto está pálido, o cabelo mais desgrenhado do que o de hábito. A sensação é de que minha energia foi drenada, sobrou pouco para o resto do dia.
Estou vindo do Fluxo, rua Helvetia, coração da Cracolândia. Contei da festa junina, há alguns meses, hoje foi dia da festa de dia das crianças, um tanto atrasada. O entorno está diferente, parte de ruas foram fechadas. Passamos em frente à Sala São Paulo, de onde vem o som do ensaio da orquestra, alguns usuários dormem na calçada, um contraste que sempre nos choca. Seguimos direto pelo meio do Fluxo.
Algumas outras diferenças: o carro da polícia não está parado na esquina, o pessoal do teatro não pode emprestar os andaimes para fazer as barracas e há pouco espaço para nos espalharmos. Entramos no Atende para esperar as pessoas de outras organizações que chegam logo depois. Quem dá início à festa é F., médico e palhaço. Monta sua aparelhagem de som e cumprimenta a todos: gays, travestis, craqueiros, maconheiros e diz que vai tocar músicas que não tocam no castelo de Frozen, as pessoas fazem uma fila para pedir música.
O pessoal das organizações ocupa um espaço na rua em frente ao Atende onde conseguem colocar as mesas com o cachorro quente e a pipoca, uma fila gigante se forma, calma. Nós abrimos nosso pano branco com tecidos coloridos na borda sobre uma lona plástica do outro lado da rua, em frente ao Redenção. Um rapaz sem os dentes da frente, que vi na festa junina, diz olhando para nós “obrigado por voltarem” e se vai. O tecido que esticamos é para ser desenhado com giz de cera, há alguns bambolês, uns carrinhos, brinquedos. Nosso grupo senta-se a uma ponta, não deu tempo de fazer os sacos de bala, pirulito e bexiga, em roda começamos a fazer isso. Um de nós coloca bacias plásticas com doces e brinquedos no meio do tecido, espalha outras com giz de cera. Primeira surpresa, nenhum usuário pisa com o sapato no tecido, todos deixam o calçado no plástico antes de avançarem para o meio. Ninguém falou – não pisem no pano calçados – foi automático, puro bom senso e vontade de preservar algo. Outra surpresa, ninguém avança para os saquinhos de doces e enche as mãos: pegam um ou dois, os mais tímidos perguntam primeiro se podem pegar. Ao meu lado, um usuário senta-se com seus doces e um giz e começa a escrever. Empaca na palavra família, pergunta para mim se é com “lh”, com um giz escrevo a palavra no papel do saco de doces e ele copia. Fica um bom tempo escrevendo, decorando algumas letras. Quando termina me chama para que eu leia. “Tudo posso naquele que me fortalece. Fé. Família”. E mais um tanto de texto que não guardei. Empaco na família, sempre. Ele me diz ter saudade do filho, e sentir falta de abraços. E se vai. Digo para mim mesma: respira....!
F. resolve nos ajudar a montar os saquinhos, ela está encantada com B., a quem chama de Diva, ao que B. responde: somos divas, temos que ser. Do rádio vem a música: é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã, da Legião. F. canta a letras aos berros, cantamos junto bem alto. F. bebe, derrama vinho, enche bexigas e quando descobre que B. vai embora, fica triste, brava, sente-se abandonada, os olhos enchem de lágrimas e sai batendo o pé. E. diz, ela está bêbada, mas é tranquila.  
Foi tudo muito rápido dessa vez, não havia crianças circulando, só adultos. Recolhemos nossas coisas e voltamos, parte direto para seus compromissos, parte faz uma parada no Amarelinho para uma cerveja. Na conversa, descubro que pessoas da região que trabalham com as trans foram ao IML para tentar identificar a travesti morta outro dia, tentam evitar que seja enterrada como indigente. O jornal El País diz que testemunhas contaram que na briga um dos homens gritou que depois da posse do Bolsonaro a caça aos viados ia ser legalizada.
Essas são as pessoas daquele lugar, é impossível saber como é estar lá sem experimentar. Pessoas, como eu, como você, como meu filho, como qualquer um, apenas pessoas. Dessa vez tenho ainda mais medo que o furacão passe e leve todo mundo. Cresce no país a vontade de destruição – Eros dorme, Tânatos apodera-se do mundo – escrevi há pouco tempo. A cada dia sei uma história nova de homofobia ou racismo, sempre a fala de que depois da eleição isso vai ser liberado. Não posso impedir nada, então venho aqui e conto.

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