Trecho painel pintado pelo Edson
Depois
dos resultados de ontem, achei que o dia de hoje ia ser um arrastar de correntes
só, com vento uivando e portas batendo. Primeira surpresa do dia: a dor no
corpo passou. Fazia um mês mais ou menos que meu corpo estava permanentemente contraído,
cheguei a achar que era um quadro de velhice súbita e galopante. Em alguns dias
acordava com dor de cabeça e sabia que tinha passado a noite mastigando pedras.
Hoje a dor se foi, na verdade eu não estava dando conta mais da incerteza. Na
rua, voltando do supermercado, ainda vejo os sinais da ressaca política: uma
mulher passa por mim, me olha, faz uma cara tristíssima de choro e segue. Foi
tão ligada à minha presença que pensei não poder ser uma dor pessoal.
Um
amigo me chama para um encontro sobre produção partilhada do conhecimento que
envolve a USP e a Universidade Federal de Goiás, na Geografia. Combinamos de
pegar do meio da tarde para o fim. Chego lá pelas 15 horas. Já gosto de entrar
no prédio. A moçada reunida discute no que parece ser uma assembleia, faixas
por toda parte. No auditório, um grupo de jovens de um coletivo de jornalismo fala
sobre a experiência de fazer um documentário em Cuba, com crianças que vivem na
região de Sierra Maestra. Estão lá o computador, as crianças brincando no
celular, os banhos de rio vestidos com roupas comuns, shorts e camisetas.
Perguntam sobre a Revolução, há um orgulho pelos avôs e bisavôs terem lutado,
pela distribuição de terra, pela educação e saúde gratuitas. São crianças, riem,
falam besteira, fazem caras. Enquanto o pessoal do coletivo fala, E. pinta um
painel na parede da fileira à frente de onde estou. Olho fascinada, um movimento
de pulso com o pincel mais gordo vira um cacto, com o pincel mais fino vira uma
palmeira, com uma trincha vira um telhado de palha.
Depois
vem a fala de uma professora, D., de uma comunidade minúscula na Chapada dos Veadeiros.
O documentário foi feito pelas crianças do lugar com apoio de muitas instituições.
Nada de alguém filmando de fora, acho uma lindeza que cada imagem venha
identificada com o nome da criança ou adolescente que as filmou. As perguntas das
entrevistas saem deles também. A certa altura, no filme, um dos alunos pergunta a D. o que é ser professor. Com a câmera do lado de fora, e ela do lado de
dentro da casa, sentada perto da janela, ela responde: ser
professor é gostar de gente. Ser professor é ter a capacidade de se renovar por
que o mundo ao redor é sempre novo. A certa altura ela e os alunos estão na boca de um
vale, imensas serras ao longe. Ela explica as serras, pergunta em que vale
estamos? De que rio? Sinto uma inveja imensa dessa aula de geografia. A
paisagem é de gritar de tão linda. Ao completar sua fala, na mesa, ela diz que eles
são privilegiados porque o cerrado está preservado onde vivem, em outros
lugares só sobrou um restinho.
Corta
para a fala do professor de educação física que dá aulas lá. Vindo da cidade,
ele diz precisar entender o desenvolvimento corporal das crianças do campo. Não
é só que elas têm mais mobilidade, elas têm mais experiência corporal. Subir em
árvore é um exercício de liberdade, diz ele, é muito mais do que se agarrar em
algo. Lembro de mim mesma espiando o mundo no galho mais alto da goiabeira do
quintal de casa. Se você recupera aquela sensação exata de estar lá em cima,
passa a acreditar que pode qualquer coisa. Me dá uma pena imensa das crianças
da cidade, criadas aos gritos de cuidado, você vai se machucar. Eu carreguei
alguns tombos como troféus de poder.
Outras
pessoas falam, outras histórias de um mundo tão outro que na maior parte do
tempo nem lembro que existe. Para encerrar, fala o professor N., meio que o
guru de todo mundo que passou por ali. Ele conta que quando voltou para o
sertão teve que se assumir novamente como uma pessoa do campo e que essa assumência
como camponês... Quero rir, gritar. Uma palavra que não conhecia e que é quase
um poema ela mesma. Assumência. Ele segue, diz que o povo de lá é insubmisso,
não aceita ser nem senhor, nem escravo. Eles querem ser um núcleo especializado
em comunicação popular. Ele continua: os processos é que contam, não nos
interessa muito os produtos. A vida interessa, não o consumo final. Ele termina
com uma história ocorrida na nação xavante. O grupo filmava uma cerimônia, os
homens adultos num círculo pequeno, os jovens no segundo círculo, mulheres e
crianças no círculo externo. A certa altura, uma mulher xavante, corta os círculos
e vai para o centro. Ele brinca, é proibido, mas os xavante são guerreiros,
vocês sabem. Ela diz, sei que é contra a tradição eu estar aqui, mas estou
vendo as mulheres ali filmando, eu sou descendente de guerreiros, posso falar
também. Vocês homens não estão sabendo consertar o mundo, está na hora das
mulheres tomarem o poder. Gargalhamos, a solidariedade das mulheres espalhada
em todo canto.
Quase
indo embora, já saindo do prédio, vejo D. olhando a escada caracol pintada de
vermelho. Começamos a conversar como se nos conhecêssemos. Ela me diz rindo: o
sertão é tão longe, mas tão longe, que uma amiga pediu que quando eu chegasse
numa rua bem barulhenta de São Paulo, gravasse um áudio para ela ouvir como é. Rimos
as duas. Digo: e eu fiquei com vontade de fazer estágio onde você mora. Ela
diz, a gente tem vontade de ver como é a vida do outro, né? Respondo que sim,
que a gente aprende com isso. Nos despedimos sorrindo, velhas amigas há quinze
minutos.
Vocês
lembram o dia de ontem. Como pode caber tanta beleza no de hoje? Volto a D.: o
mundo ao redor é sempre novo.
Que lindo!
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