Começa devagarinho, acho que é uma virose,
depois uma gripe, que cansaço extremo é esse? Não passa o cansaço. E essa febre
estranha. Desconfio que preciso ir ao médico. Suor toda madrugada mas nesse
novembro de 2018 não está calor. A pele empipoca. Mais febre. Ida ao médico e
pedidos de exame. O laboratorista liga assustado, seu exame de sangue deu muito
alterado. Pode refazer amanhã? O médico vê os resultados e me manda ir para o
hospital já, de noite. Não pode ser amanhã? Não, agora. Eu vou.
Talvez dengue, chikungunya, zika,
citomegalovírus, parvo vírus? Leucemia? Muitos e muitos exames de sangue
depois, três mielogramas (uma agulha perfura seu osso do quadril ou o externo e
busca a medula lá dentro, é menos chato do que tratar de dente), uma biópsia de
medula (dessa vez extraem um tiquinho do seu osso junto) e vem o resultado:
mielodisplasia. Já ouviu falar? Nunca tinha ouvido. Um primo crônico da
leucemia. Foi tão demorado o processo que já sabia que boa coisa não vinha. Sei
que não quero morrer agora, ainda quero ser por muito tempo a pessoa para quem
meu filho possa voltar, caso precise. Para isso podem furar, cortar e me dar drogas pesadas,
não ligo; outra coisa, não vou olhar o doutor google, não dou conta de
generalizações agora, só de mim mesma.
À minha volta os médicos são gentis, falam em
tratamento todo o tempo. Talvez eu padeça de falta de imaginação e acredito. Só
tenho pânico quando ouço que transplante de medula é uma possibilidade, restos
de histórias antigas. Estou cercada por família, amigos e por pessoas
inesperadas, um mar de afeto que é o que há de mais importante na vida e que impede que eu afunde. Ganho presentes, conversas boas, orações para Deus e para Alá,
torcida, me emprestam livros, damos gargalhadas, há algumas lágrimas e um pouco
de insônia em algumas noites. Uma pessoa me diz como despedida de uma conversa
pelo telefone: sursum corda, corações
ao alto, frase do começo da missa quando era rezada em latim. Sou bem herege
mas gosto desse coração tão presente, guiando tudo.
Não sinto dor, desânimo, minha energia volta a
ficar próxima do normal, continuo a fazer meu trabalho no quarto do hospital,
estou de bom humor a maior parte do tempo. Eu mesma estranho a reação. As
coisas continuam a me interessar, quero saber como são os procedimentos, me
fascina a inteligência que existe num simples curativo, vejo os diferentes tipos
de lixo (comum, infectante, tóxico). Olho fascinada os médicos e enfermeiros absortos
em frente ao quadro branco gigante onde estão anotadas as cirurgias
programadas.
Ao longo do tempo, descubro como é fazer
exame de sangue todo dia, como é ter acesso venoso, como é ter um cateter do
tipo PICC, como é colocar um cateter do tipo port-o-cath. Sei como é andar de
cadeira de rodas nos corredores do hospital para fazer exames. Descubro como é
andar de maca pelos mesmos corredores para ir ao centro cirúrgico. Alguns
enfermeiros podem fazer disso uma aventura em alta velocidade. Com emoção ou
sem emoção? Com emoção! A maca quase zune nas curvas, não esbarra em nada. A
enfermeira que me traz para o quarto depois de um exame, brinca que vai subir atrás
na cadeira de rodas no longo corredor em declive; digo que posso gravar um
vídeo no celular de nós duas descendo descontroladas. Ela diz que ia custar o
emprego mas que iria viralizar. Gargalhamos.
Passo o Natal no hospital, um amigo vem no
começo da noite e fica comigo até a família chegar mais tarde. Tenho a maior
surpresa da vida quando ganho um kindle do meu filho. Era a única a não saber.
Eles riem com minha reação, minha sobrinha faz um vídeo da cena, do meu
espanto. A noite termina com uma rodada de truco. Na virada do ano já posso
sair do quarto e passear pelo hospital, depois de um mês fechada. Descemos para
o bosquezinho, onde vi um pica-pau e uma orquídea absolutamente desconhecida,
com pétalas tigradas. Um amigo e a namorada do meu filho estão juntos. Todos
generosos, deixaram convites bem mais animados para estarem comigo.
Foi-se a primeira químio. A droga é tão forte
que só enfermeira(o)s podem manipula-la, com luvas, máscara e um avental
descartável por cima da roupa comum. O pessoal da limpeza também precisa usar
luvas, máscara e um avental desses só para limpar o banheiro que eu uso. Brinco
que devo estar fosforescente ou radiativa depois de cinco dias tomando o
remédio. Não sinto efeito colateral, apenas meu cabelo começa a cair mais. O
resultado dos exames depois da primeira rodada é bem bom, parto pra segunda.
Antes disso, ganhei o porth-o-cath, um cateter que fica embaixo da pele como
uma veia artificial. Meu filho diz que virei uma “ciborgue perfeita intradermal’.
Adoro que ele também brinque com as palavras. No meio de tudo, ainda há
momentos em que sinto ter uma sorte da porra. Em outros pergunto por que comigo? Queria estar na praia. Mas sei
que a gente pode um tantão, bem mais do que imagina, sempre.
P. S. Tomei várias bolsas de sangue, tomei
plaquetas e como todo hospital, o que passei a frequentar – o Hospital Alemão
Oswaldo Cruz – também precisa de doadores. Se alguém puder doar, vai ser
sensacional, as orientações estão no link a seguir. A diferença que faz na vida
de quem toma é fácil de explicar: digamos que passei a entender perfeitamente
bem os vampiros. Além da pura e simples manutenção da vida, sabe aquela mudança de uma pele branca
doentia para uma rosada invejável? É exatamente assim.
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