Em dia de luta pela educação, o SUS


De casa ouço as vozes da passeata contra os cortes na educação que sobe a Rebouças, do alto vem o barulho de helicópteros – imprensa? PM? Não sei, sei que queria estar lá. A sensação de desmonte do que ainda não é bom o suficiente tem sido dura nos últimos tempos. Boa parte da nossa comida vem com doses de agrotóxicos inaceitáveis, mas um número cada vez maior deles é liberado; o melhor da educação ainda não está ao alcance de todos, que tal destruir tudo? Que tal vigiar menos as estradas, deixar correr mais, usar mais armas, envenenar mais? Que tal questionar menos e censurar mais? Que tal garantir que todo mundo pense igual? Que tal fazer pensar que há algo de muito religioso nas preocupações enquanto estimulamos a violência e a morte? Deus, se existe, deve olhar para a Terra e se arrepender de ter deixado Noé flutuar com a família. Tanta coisa a ser melhorada e caminhamos velozmente para o lado oposto.
Embora o dia seja de luta pela educação, tenho vontade de falar sobre saúde. Talvez porque é o assunto presente na minha vida esse ano, com toda a força possível. E se estudei em escola pública a maior parte da vida, pouco tinha usado o Sistema Único de Saúde. Sabia das filas gigantescas para conseguir um exame ou uma consulta, da falta de leito para internação, da falta de remédios essenciais. É o que a gente fica sabendo à distância, e é verdade. Mas na semana em que o ministro da saúde defende terminar com a gratuidade universal, é hora de só pensar nas falhas imensas? Ou de lembrar o que o serviço consegue fazer, apesar de tudo?
Lembro de há alguns anos, ouvir uma pessoa da área da saúde pública dizer que nos demais países da América Latina há uma inveja profunda do SUS. Ela falava de profissionais que encontrava em congressos pelo mundo. Apesar de defender o acesso gratuito à saúde, me surpreendi, o que há para se invejar em algo com tantos problemas? Só então comecei a me dar conta do tamanho de um serviço que vai da vacina ao transplante. Lembrei da porteira do prédio onde moro contando que a mãe vinha do Piauí para fazer o controle do câncer de pele no Hospital das Clínicas. Horrível ter que fazer uma viagem tão longa? Sim, mas em quais países do mundo uma pessoa do interior mais profundo e rural tem acesso a um tratamento desses? Não tenho a resposta precisa mas parece que não são tantos assim.
Depois comecei a ter experiências mais pessoais com o SUS. A primeira em 2018. Saí um sábado à noite para um passeio a pé perto de casa. Voltando pela rua dos Pinheiros, dei com três jovens: dois rapazes e, no chão, desacordada, uma moça, inconsciente de tanto álcool. Segui meu caminho mas a preocupação bateu. Será que eles sabem que álcool mata? Voltei. Um dos moços só não estava inconsciente também por acaso, o outro amparava a cabeça da garota para ela não encostar no chão duro. Quando comecei a conversar ele disse ter chamado o Uber. Insisti: você tem que ir para o hospital com ela. O Uber chegou, mas o motorista se recusou a levá-los e avisou, bravo: vocês têm que chamar o Samu! Resumindo a história: o Samu deu orientações por telefone mas não chegava, busquei meu carro em casa e, junto com outra moça que parou para ajudar, levamos a moça e o amigo sóbrio para o pronto atendimento do HC. Meu receio era imenso, sabia que o HC não atendia mais pessoas que chegavam lá diretamente, só as encaminhadas por outros serviços de saúde. Paramos na porta, uma explicação rápida para o porteiro resolveu tudo, ele abriu o portão e nos deixou entrar. Lá dentro a colocamos desacordada em uma cadeira de rodas e entramos no salão, ninguém colocou nenhum obstáculo para atendê-la. Uma enfermeira veio avisar que havia uma pessoa na frente na triagem e que ela seria a próxima. Deixamos a moça desacordada e o amigo que a essa altura esperava o pai da garota chegar. Saímos tranquilas, sabendo que ela ia ser atendida.
Aí fiquei doente eu. No início, tudo se resolveu com meu convênio e pagando algumas coisas como particular. Até que meu médico pediu um remédio cujo custo mensal é de R$ 5 mil aproximadamente. Olhei arregalada para ele que me disse você vai ter que ir à farmácia de alto custo do SUS. Nunca havia prestado muita atenção nesse tipo de serviço, me preparei para enfrentar o horror. Primeira parada: conseguir a segunda via da carteirinha. Lembro de estar cansada, com medo de esperar muito tempo na Unidade Básica de Saúde da rua Purpurina. Na fila à minha frente, dois homens que em menos de um minuto foram encaminhados. Me aproximei do rapaz no balcão e expliquei o que precisava. Ele pediu um documento, puxou meus dados no computador, imprimiu uma nova carteirinha e me deu. Tempo total: uns 30 segundos, no máximo. Tempo total entre a chegada e ter a carteirinha – um minuto e meio. Olhei para ele de olhos arregalados e perguntei “é só isso?” Ele riu, sabendo exatamente a razão do meu assombro. Só.
Dia de pegar o remédio na farmácia. Chego num prédio no Cambuci. No térreo dezenas de cadeiras estão ocupadas, à direita uma fila imensa, a minha fila. Surpreendentemente ela anda rápido e pego minha senha. Preciso passar pela triagem. Consigo sentar e espero minha vez. Quando mostro os exames e o pedido médico, descubro que está errado. A médica colocou o diagnóstico da minha doença e o correto seria colocar o código do problema que o remédio iria combater, nem sempre eles coincidem. O rapaz que me atende explica tudo com clareza, me dá um papel indicando exatamente o que deveria ser mudado. Depois pergunta você consegue voltar hoje? Se conseguir, venha até um pouco antes das 13h, que é quando acaba meu turno, e eu a encaminho para que não precise esperar novamente. Ele é atencioso e pelo tom de voz que escapa dos guichês ao lado percebo que o profissionalismo é geral. Volto dias depois. É um dia de chuva, há mais gente ainda. Dessa vez não consigo sentar mas a espera vale a pena, passo na triagem e sou encaminhada para outra sala. Ela me assombra pelo tamanho e pela quantidade de gente. Há um enorme U feito por 31 guichês onde são entregues os remédios. Minha senha é a 9170, no painel chamam a senha 9080, quase cem pessoas na minha frente. Não demora muito para que eu perceba que talvez haja quase mil pessoas na minha frente já que chamam também os outros milhares: 3 mil e tanto, 4 mil e lá vai.... todo o resto. A espera é gigantesca, fico mais de 3 horas lá, sentada dessa vez. A multidão sai com caixas, caixinhas, isopor. Muita gente idosa, muita gente simples, um tanto de classe média, gente de todo tipo. Chega minha vez. Entrego o pedido e todos os documentos para o rapaz do guichê. Ele pega a receita do remédio e coloca numa cestinha de plástico. Uma moça passa por trás, pega a cestinha e vai para as entranhas do prédio e, enquanto isso, o rapaz coloca meus dados no sistema. Quando ele diz o dia em que devo voltar no próximo mês, pergunto se existe a possibilidade de entregarem o remédio em casa, havia avisos sobre isso. Existe, ele me cadastra, e diz que o motoboy vai levar nos próximos dois meses o remédio, na segunda vez em que ele for, se eu ainda precisar de mais, tenho que enviar de volta uma série de exames e novo pedido do médico, ele me dá papéis com tudo explicado. Se tudo estiver correto, continuarei a receber. Nos dois meses seguintes, recebo o remédio em casa e depois, felizmente, não preciso mais.
É uma experiência minúscula, mas penso nas centenas de outras pessoas que pegaram remédio ali naquele dia, talvez milhares, e quase sinto uma epifania, é nessa direção que quero ir, em que todos tenham acesso à saúde. E à educação, e a mais liberdade, e a um ambiente mais belo e menos degradado, e que as diferentes culturas continuem a ter espaço para que os olhares diferentes possam ajudar a entender a vida... pensem no pode fazer o mundo melhor, todas essas coisas. Eu sei, falta remédio, há filas gigantescas para exames e consultas, nem sempre todo mundo é simpático, muita gente morre na falta, mas você tem certeza de que o melhor é mesmo acabar com SUS?


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