A foto da foto ficou um horror, o reflexo destroi, mas lá...
Desço a Antonio Carlos
para voltar para casa, à minha frente um caminhão betoneira se arrasta, numa
velocidade levemente mais baixa do que a média, o suficiente para que minha
ansiedade me faça mudar para a pista da esquerda. Emparelho com ele e o carro à
minha frente para. Era um Uber, acho, a moça na calçada abre a porta de trás e
entra. Vejo todos os carros atrás de mim mudarem de pista, a betoneira seguir.
Falo um palavrão para mim mesma, num certo mal humor. No instante seguinte,
olho para cima. As árvores velhíssimas do outro quarteirão parecem uma renda
verde contra o céu azul, duas pombas se jogam de uma árvore próxima num voo
livre curtíssimo antes de baterem as asas e controlarem a aterrissagem na sombra
para futucarem a calçada atrás de comida. Porque tenho espírito trapezista,
capaz de saltos no ar, sorrio e acho a tarde a coisa mais linda.
Acabei de sair da
exposição de fotografias do Sergio Larrain no Instituto Moreira Salles. Inaugurada
em abril, ainda não havia conseguido ir. Cheguei a ver as exposições das duas
galerias inferiores num outro dia mas não tive energia para ver mais uma. Tenho
baixa tolerância a exposições. Vejo um pouco e preciso parar para pensar sobre
o que vi, para entender porquê mexeu comigo ou não, para permanecer na situação
de saborear algo. Ou empanturro, simples assim. Hoje, hora do almoço, depois de
outros compromissos, resolvi ir lá.
O texto de abertura já
me interessa, diz assim: “Fotógrafo pelo gosto da vadiagem, pelo desejo
profundo de estar no mundo e na pureza do gesto, o chileno Sergio Larrain,
apesar de tudo, passou a maior parte de sua existência em retiro, praticando
meditação, ioga, escrita e desenho”. É dos meus, penso. O trapézio voando para
o mundo e para o mosteiro. Me volto para ver as fotos das crianças de rua de
Santiago, anos 50, e já travo ali mesmo. Em uma delas há uma grade do que
parece ser um bueiro ou saída de ar; em cima, dois pares de pés descalços e
sujos de crianças deitadas, um tico das calças que vestem e pronto. Elas estão
tão abandonadas que fico congelada olhando, tentando fazer com que as lágrimas
não escorram. Não costumo chorar com fotografia mas fui tomada. Mais à frente
um pouco, um menino me olha: cara suja, cabelo sujo, casaco sujo, mão imundas.
Não deve ter mais do que dez anos mas o olhar dele, o rosto, é de um homem
velhíssimo, que já viu tudo. Fico apatetada novamente, quero sentar ao lado
dele e saber como está. E assim segue minha andança. Lá estão as duas meninas
mágicas descendo a escada, em que a que está atrás parece a sombra da que está
na frente. Lá estão as filhas do pescador penduradas na cerca como
contorcionistas, lá está o cachorro subindo a rua de calçamento de pedra e
terra, a comunidade paupérrima ao redor, lá estão os incas de Pisac (os incas estão
vivos diz ele). Demoro a perceber o que me intriga nas fotos, depois descubro,
Larrain parece fotografar na altura dos cães e das crianças pequenas, nunca parece
estar acima do que vê. Mesmo quando fotografa do alto de uma escada, dá a
impressão de ter se abaixado e mantido esse olhar diferente.
Descubro que ele é da
geração dos meus pais, nasceu em 1931 e morreu em 2012. Estar vivo é tão
misterioso que estranho a impossibilidade de entrar em contato com ele e dizer:
me apaixonei, transito nesse mesmo universo! Não são só os mortos queridos que gostaríamos
de ter por perto ainda vivos, qualquer um que me toque profundamente vira meu parente,
vira falta. O mundo não está em seu melhor momento para arte, para beleza, para
lucidez, a todo momento me assombro com a brutalidade, com a grosseria e a
falta de sensibilidade dominantes. O ser humano tem sido exaltado pelo que tem de
mais bruto. Essas fotos negam esse momento, me aquecem e me fazem saltar em
outros momentos, outros espaços. Também duríssimos mas sem um tico de degradação.
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