O dia útil começa cedo. Antes das oito horas, uma das médicas da
equipe que me trata liga avisando para eu não ir à consulta, todo mundo que não
tenha uma emergência deve ficar em casa. Além disso, o hospital já teve seu
primeiro positivo para coronavírus, melhor ficar longe. Ao longo do dia,
ficamos sabendo da primeira morte pela doença, outras estão sendo investigadas.
Cada vez mais também, é preciso lembrar de quem não tem como se proteger direito:
trabalhadores informais, trabalhadores com carteira que não podem trabalhar
em casa, pessoas em moradias com condições mínimas de salubridade,
trabalhadores essenciais -nem preciso lembrar do pessoal da saúde, ou de quem
trabalha produzindo e distribuindo alimentos. A desigualdade e a injustiça
gritam mais nessas horas, mesmo que os economistas pareçam se preocupar apenas
com a Bolsa e o dólar.
Tento ser uma pessoa doméstica, algo para o qual treinei
pouco na vida. No período de doença mais forte, não tinha energia, era mais
fácil. No resto do tempo, segui saindo, tomando cuidado, mas saindo. No domingo
brinquei que me sentia num jogo, perdendo a rodada. Um amigo que ouviu definiu
melhor: você caiu no coronavírus, volte três casas, fique cinco rodadas sem
jogar. Gargalhei, me sinto assim.
Uma amiga me liga da Alemanha, também ela em casa. Lá já é
fim de tarde, faz frio e ela me conta que bebe um vinho. Rimos, nos exaltamos,
falamos das diferenças entre um país com mais ou menos dinheiro. Ela veio para
o Brasil em fevereiro, um mês depois já não poderia vir. Ela fala da filha, diz
que ela é do tipo “os ombros suportam o mundo”. Drummond e seu poema, tão
adequado a esse tempo.
Desligamos e faço o almoço escutando o programa Som a pino. Adoro
ouvir rádio ou spotify na cozinha. Uma das músicas de hoje é O que foi feito
devera, com Elis e Milton, hoje ela faria 75 anos. A letra diz: falo assim por
saber, falo por acreditar, que muito vale o já feito, mais vale o que será.
Fala também: outros outubros virão, plenos de sol e de luz. Os ouvintes escrevem
para a apresentadora no facebook para contar que choram, que nesse dia tão difícil,
choram. Eu estou quase, a apresentadora diz chorar também. Almoço terminado, começo
a ouvir como uma alucinada Clube da esquina 2, onde essa música está. Relembro
outra que me enlouquece: A sede do peixe. Milton canta... para o que não tem
solução, a sede do peixe ensinou, não me vale a água do mar, nem vinho, nem
glória, navio. O que não pode ser mudado. Em tempos de “acredite, você pode
tudo se tiver pensamento positivo”, a letra é quase uma agressão. Mas, para
mim, é de uma beleza! A sequência de músicas mexe tanto comigo que enquanto
escuto o álbum, tenho vontade de colocá-lo no início novamente, como se fosse
possível ouvi-lo duas vezes e assim não correr o risco de ficar nem um segundo
sem ele.
Danço um pouco, pego na internet o resultado de um exame que
fiz, tudo certo, coloco um tapete para lavar, a gata vomitou nele. Escrevo no meu
livro dos sonhos, lembrei de um sonho dessa noite. Adoro o nome que o cientista
Sidarta Ribeiro dá a esses cadernos: Sonhário. Só o nome já inspira essas
histórias mágicas noturnas. E o sonho ele chama de o oráculo da noite. Ciência
também pode ser poesia.
Resumo do dia: medo, tristeza, poesia, música, livros e
amigos queridos. Receita para os dias que virão. É cedo ainda, vai ficar
mais difícil antes de começar a passar.
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