Bolo, gatos e perdão


O gato segue dormindo todos os dias entre o lençol da cama e o edredon, como se houvesse decretado o inverno, mesmo que lá fora faça quase 30°C. No verão ele deita sobre a coberta, às vezes com as quatro patas viradas para cima, parecendo um esquilo morto com aquele rabo peludo. Um tanto aflitivo, confesso. Há uma exceção, ele gosta de vir pedir colo quando me vê trabalhando no computador. Aí, mia e mia. A gata dorme no sofá o dia todo, às vezes, quando sento ao lado, esfrega a cabeça em mim, meio que exigindo carinho.
Os dias seguem quase iguais no isolamento, o que faz com que pequenas variações importem. Hoje entrei no banheiro para tomar banho e tudo cheirava a bolo. Um bolo, bolo, daqueles sem nenhum sabor especial além do da mistura de farinha, açúcar, ovos, alguma gordura e leite. O perfume entrou pela janela da área de serviço vindo de algum vizinho e invadiu tudo. Quase corri para colocar os ingredientes na lista de compras do mercado, só não fiz isso porque sei que o comeria em dois dias, no máximo, e me sentiria mal depois. Bolo quente é a comida mais afeto que conheço, talvez o substituto alimentar do abraço.
Outra variação do dia foi uma longa conversa por telefone daquelas em que a gente faz retrospectiva parcial da vida com uma amiga e se lembra de coisas boas, mas também de antigas dores. Algumas coisas voltam, como pequenos fantasmas, não mais assustadores, mas ainda causando pequenos sobressaltos nos cômodos mais desertos da casa.
Tento transferir para outras áreas da vida o que senti quando começou o isolamento. Explico. Meus dias de preocupação maior por conta do transplante haviam terminado há pouco tempo. A única coisa diferente que consegui fazer foi ir à praia por uns dias. Belos, quentes, de mar limpo e transparente. E acabou, voltei para dentro de casa, num isolamento tão rígido como só em alguns momentos no hospital. O primeiro sentimento foi de perseguição, como se a pandemia tivesse vindo para me sacanear. Claro que esse ataque infantil durou alguns minutos e a realidade do mundo voltou. Não, aquele furacão que destruiu sua casa não tinha ódio de você. Não há desejos em tempestades e vírus, eles apenas são.
Talvez seja assim com algumas mágoas também. Sei que em alguns casos dos que mais doeram, a pessoa não conseguiria agir de outra maneira, era o escorpião sendo escorpião e picando o sapo no meio do rio. Se afogando em seguida, sabemos, mas picar é da natureza do bicho. Quanto mais o tempo passa, mais as ideias de racionalidade e consciência humanas me parecem superestimadas.
Fim do dia, ouço o poema de domingo no instagram da Rita von Hunty. Guilherme lê um William Carlos Willians. Por causa da história que envolve o poema, ele fala sobre a etimologia da palavra perdão, sobre a partícula per, presente em pernoitar, passar toda a noite em algum lugar; perfurar, atravessar algo de ponta a ponta; perdoar, se dar inteiramente mais uma vez. Descubro que em algumas histórias sou péssima de perdão. Ainda há o que aprender nesses tempos estranhos.

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