Fantasmas noturnos (Isolamento #2)

Vou dar comida para os gatos e vejo uma macha redonda cor de sangue escuro no chão da área de serviço. Vem um segundo de pânico, será que um deles está gravemente doente? A gata fez 16 anos segunda-feira, o gato tem 14, nenhum dos dois exatamente filhote. Olho de perto e vejo que é uma amora antes congelada, agora vazando sucos no chão. De tarde fui bater amoras com iogurte natural do tipo grego para fazer meu sorvete instantâneo. Não vi que o botão do liquidificador estava apertado e quando coloquei na tomada, voaram algumas amoras na cozinha. Essa, mais ousada, chegou longe, sem que eu visse. Relaxo, tudo bem com os bichos, embora eu perceba que a vida não está maravilhosa para eles. O apartamento está monótono, sou sempre eu e só eu dentro de casa, não há entra e sai, não há outras pessoas para pegá-los no colo, fazer cafuné. Também os gatos estão sem vida social, e para ele whatsapp, zoom, google meets, facebook ou sei lá mais o que não resolve nada.

Eu, em compensação, oscilo. Existem os momentos em que não quero falar com ninguém mas existem muitas e muitas vezes em que não quero parar de falar. Emoções detonadas por pequenas conversas inesperadas. De manhã me pego tendo papo cabeça com um amigo e citando Djamila numa troca de mensagens por whatsapp. Quando percebo o que estou fazendo digo que sinto falta do vinho na mesa, de estar junto, das conversas. Existo porque o outro existe, escrevo porque há alguém na outra ponta. Um desconhecido pergunta no meio de um recado de trabalho como estou levando o isolamento. Uma pequena fuga ao roteiro me comove, tenho a sensação de que ainda vai ser possível conhecer gente nova, não estou condenada ao universo congelado da fábula indiana de que gosto, o mundo perfeito e morto construído por um deus que reclama dos erros de Brahma ao fazer o nosso mundo. Em outra conversa, com amigas de um grupo de três, descubro que todas tivemos insônia na última noite. Desconfio que às vezes gasto toda minha energia para segurar essa onda em que estamos durante o dia. Me mantenho calma, tranquila, trabalho, leio, vejo bobagens na Netflix, converso, tomo uma cerveja, cozinho algo. À noite a defesa cai. Fecho os olhos, quase mergulho no sono e o coração pula em taquicardia, enlouquecido. Os fantasmas chegam à noite, sempre se soube. Reenceno o dia, mais um pouco de vídeos, leitura, até o sono chegar.

Tem sido também um tempo de sincronicidades. Leio em um livro sobre uma teoria de um escritor norueguês. Nenhum detalhe, porque o que se discute ali é na verdade literatura. Passeio pelo instagram, entro num link e lá está a explicação sobre a teoria da qual nunca havia ouvido falar até aquele dia. Ouço em um podcast um trecho de uma entrevista que a Clarice Lispector fez com o Tom Jobim. É lindo o trecho, fico curiosa. No dia seguinte, o link para a entrevista é colocado no grupo do clube de leitura. Corro para ler. Um papo meio maluco de amigos, uma conversa psicodélica segundo Clarice. Assim sigo. É bom, mas sinto que gasto muita energia me mantendo à tona nessa fase enlouquecida em que vivemos. Leio que os bombardeios incendiários à Tóquio na segunda guerra causaram 90 mil mortos; o número de mortos por Covid-19 no Brasil aproxima-se rapidamente disso. É um desastre de guerra em tempos que deveriam ser de paz mas que têm trazido bem pouco dessa sensação tão desejada. Vou parar aqui para não entristecer ninguém, isso a gente faz sozinho todo dia, queira ou não. Durmam bem e tenham bons sonhos, fiquem em casa, se puderem, e usem máscara se saírem. A gente segura mais um pouco o desejo de ter os queridos por perto, do vinho bem acompanhado.


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