Djaimilia a me tirar do chão

 

Por que ler às vezes nos tira de onde estamos e nos arremessa rumo a um lugar outro qualquer, inexistente? Não um lugar, erro meu, um estado, esse sim perfeitamente concreto, como concreto pode ser o que sentimos. Faço parte de um clube de leitura, ontem foi dia de reunião. Taça de vinha na mão, falamos da escritora que domina a linguagem mas que não nos capturou. Por que não fomos fisgados? Classe social, estamos por demais informados por outra literatura? Para mim, talvez tenha pesado a distância no tempo que parece haver entre o texto e eu. Ele antigo, ancestral; eu, jornalista essencialmente, plugada incessantemente no agora, devorando incessantemente o hoje com olho no que vem, no que vem, no que vem. Uma das integrantes do clube falou sobre os textos que nos jogam numa espécie de epifania, tão difíceis de achar.  É em busca desses que sempre vamos, desconfio.

Manhã. Chega minha 451, a revista dos livros, como eles se classificam. Guardo como doce, para me premiar depois que terminar a faxina. Hoje é sábado, não consigo evitar o arrasta e esfrega, mesmo sendo bem medíocre nisso. No final da agitação, há um leve cheiro de produto de limpeza no ar. Almoço uma quiche que já estava na geladeira e, enquanto como, pego a revista, leio Djaimilia Pereira de Almeida falando de Fidel, seu irmão branco em uma família de negros. Duas colunas de texto, vinte centímetros cada uma, mais ou menos. Um intertítulo de uma palavra só – Nuvem. Ela fala sobre o cheiro dele, o cheiro da casa, da cozinha, uma tristeza imensa, o cheiro de uma noite no mundo pandêmico a lembrar Fidel, desaparecido já. Termino a leitura alterada. Como ou choro? Leio o trecho de novo, algo que vou fazer mais uma vez durante o dia. Não há nada estranho ali, apenas uma palavra bem amarrada na outra, escolhidas como um empurrão para me tirar de onde estou. Preciso disso, sair do lugar, ser tirada do lugar sem que peçam licença. Nessa vida estranha que levamos, tenho receio de acostumar estar em casa para sempre, acostumar estar só para sempre, acostumar estar em paz para sempre. Ninguém gosta de sofrer, mas paz pode ser excessiva, sinal de um mundo parado, sem incômodos e sem vida. Como será não ser atingida por palavras, por música, pela força de uma imagem e só conseguir pensar em quanto custou, quem pagou e nas raivas, muitas. Como será não ser mais afetada pelas gentes?

Depois falo sobre um amigo de quem fui muito próxima, há muito tempo. Conversas intermináveis eram nossa marca.  Um daqueles momentos na vida em que descobrimos algo importante. No caso, a liberdade, o poder decidir o que fazer, sem perguntar a ninguém. Um susto e uma alegria, aquela autonomia que nos permite arriscar mais um pouco, ir além. A sensação das grandes conversas é tão boa que lembro de outras pessoas na minha vida que fizeram esse papel. Algumas foram quase um catalizador, ou uma faísca. Aquela que me tirava do lugar, me angustiava, fazia eu me mexer. Pego meia taça de vinho, quero mais dessa sensação fortíssima de estar viva, de fazer coisas, de experimentar algo novo. Como diria o Leminsky, citado de cabeça porque não sei onde enfiei o livro, “mesmo na idade de virar eu mesmo[a], ainda confundo felicidade com esse nervosismo”.  Ele também um ser a causar epifanias.

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