Caim (Isolamento #3)

É um dia especialmente duro. Quando o trabalho termina e faço as coisas da casa, lavo louça, penduro a roupa no varal, como algo, também a anestesia finda. Dou uma espiada nas notícias. É sempre o pior. As mortes estão no seu ponto mais alto há muito dias e os que entendem da pandemia dizem que vai piorar muito ainda, é possível que haja um colapso hospitalar geral. Já não há mais muito espaço nos hospitais, agora 60% dos doentes têm entre 30 e 50 anos. Há proporcionalmente mais gente nas UTIs, as internações duram mais tempo. Imagina-se que parte disso deva-se às novas variantes mas não sequenciamos amostras dos doentes o suficiente para saber. Secretários de saúde, governadores, prefeitos, todos sabem que deveria haver medidas muito duras para cortar a transmissão do vírus mas é como o impeachment, esse é um país onde sabemos o que é certo, mas parte da pessoas não tem coragem de fazer o que é preciso, em parte por que o outro conjunto de pessoas, seguindo as ideias estúpidas do presidente, acha que não há o que fazer, que a economia é que importa e que a gripezinha está acabando. Nem que os mortos se empilhem na calçada em frente a porta das casas, elas vão enxergar. O presidente segue com suas mentiras constantes. É insuportável ouvi-lo, além das besteiras, dá uma sensação de que ele quer falar bonito, dá umas enroladas nas frases, usa palavras pouco comuns e o resultado é a fala de alguém que não é capaz verdadeiramente de pensar. É bom de sobrevivência, isso sim, mas só a dele e da família.

Dói tanto que algo em mim começa a entrar em desespero, a sensação é de que não aguento mais um dia de solidão e isolamento, nem mais um dia nos porões da vida. Quero desesperadamente um cigarro, mas parei e não quero voltar. Encher a cara de vinho é outra possibilidade, mas temo perder o controle. Das drogas, gosto das lícitas não medicamentosas. Tem quem prefira as ilícitas, tem quem use as de farmácia, o objetivo é o mesmo, manter o nariz fora da tempestade tempo suficiente para seguir respirando. Falar em prazer é um certo exagero.

Nessas horas penso em guerra, sempre. Ajuda imaginar que se tanta gente sobreviveu à Segunda Guerra, também podemos aguentar aqui. Decido rever Dunkirk, lembro que as imagens são incríveis, e só há o desespero de guerra, nada mais. Quase nada de família, sem mulheres, só um monte de homens jovens espremidos entre o mar e os alemães. Eles tentam e tentam e tentam sair da praia e ir para casa. Os barcos afundam, são bombardeados, os caças alemães sobrevoam todo o tempo. Aviadores ingleses tentam metralhá-los. Desabo no choro quando dois pilotos conversam, um deles em queda. É como se estivessem indo a um piquenique e o pneu do carro de um deles furasse e o outro dissesse boa sorte aí. Será que existe outra espécie animal que mande uma imensa quantidade de filhotes para a morte? Ou só nós, humanos? Temos orgulho da inteligência, da tecnologia que criamos, do domínio do meio ambiente. Olho as imagens da guerra numa ficção, devidamente amansada, e me vem uma quase certeza de que somos o maior erro da evolução das espécies. Não somos o acerto, somos o que não funcionou, o mutante que escapou dos mecanismos que buscam preservar a vida. Destruímos tudo ao nosso redor, e como isso é o planeta todo, moemos plantas, animais grandes, pequenos, rios, oceanos, montanhas, cavernas. Não há um único aspecto da Terra que tenha melhorado com nossa presença. Penso em como os mitos dizem mais do que somos capazes de entender. Descendentes de Caim, o assassino. O inconsciente é um bom contador de histórias. Além de destruir tudo o que não é humano, temos um prazer especial em nos matarmos. Agora, nesse momento, no Iêmen, milhares de crianças sucumbem à fome, e a guerra segue. De novo os mais jovens. Sempre penso nos senhores da guerra em suas tocas, tomando suas decisões.

Acaba o filme, procuro mais guerra. Caio numa minissérie americana, The liberator. Um batalhão americano de índios, latinos e negros, todos segregados em seu país. Acontece uma cena de racismo, sinto tanta raiva que a adrenalina faz aquela dor diminuir um pouco. A gata mia, quer comida. Vou lá, arrumo seu cantinho para a noite. Na volta pego a menor taça que tenho e encho de vinho.


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