O processo das inquietações nem sempre é consciente, minha pequena obsessão sobre natureza nas últimas semanas também não foi, mas me dou conta de que tudo o que tenho lido e tudo o que tem me movimentado tem a ver com isso. Parte dessas coisas são livros, mas não só.
Sábado, casa arrumada à espera da amiga que chega amanhã para
passarmos uns dias de férias juntas na praia, as primeiras desses tempos onde
há sempre um tantinho de ameaça nas esquinas, junto com um tanto de alegria,
termino de ler Escute as feras, de Nastassjia Martin, antropóloga
francesa que lutou com um urso numa região remota da Rússia. O urso esmigalhou
alguns ossos do rosto dela, deixando cicatrizes, e levou na perna uma ferida de
um instrumento de escalada. Ela conta todos os tipos de dor por que passa na
recuperação mas as maiores me parecem sempre as de não saber o que fazer com o encontro
dos diferentes mundos, o dos humanos e o da natureza, o da europeia com o de seus
amigos russos da etnia even. Alguém pergunta porque ela sempre parece precisar ir
para mais longe, mais longe, mais longe. No meio do livro, quando ela conta
como Ivan soube que ela havia sido atacada, a gente se percebe que acontecem
coisas sobre as quais sabemos pouco, conhecimentos totalmente fora do alcance
das nossas escolas e universidades. Ela fala em metamorfose, o que me leva ao
outro livro, Metamorfoses, de Emanuele Coccia.
Este foi provavelmente um dos livros mais estranhos que já li e um dos
mais belos. Estranho porque ele pensa o que eu jamais pensaria sozinha, nem de
longe, o que me fez ter que lê-lo bem devagar ou não entenderia nada. Tive
vontade de ter aula sobre esse livro, tive vontade de ter um grupo de estudo
sobre esse livro, tive vontade de lê-lo em voz alta, para aproveitar melhor o
que há de poético nele e para acumular mais camadas de entendimentos. Ele
começa assim: “No início, erámos todas e todos o mesmo ser vivo. Compartilhamos
o mesmo corpo e a mesma experiência. Desde então, as coisas não mudaram tanto.
Multiplicamos as formas e maneira de existir. Mas ainda hoje de somos a mesma
vida.” Ele segue investigando o nascimento, por exemplo, e mostra como somos
algo em um corpo que se transforma e vira um outro, uma pequena metamorfose no
meio do que vem acontecendo desde que as poeiras das estrelas se misturaram de
maneiras loucas criando os diferentes elementos químicos que seguem formando
nosso corpo até hoje, bilhões de anos depois. Bilhões é uma palavra sem um
sentido real para mim.
Passo da fera de Nástia para o Banzeiro Òkòtó, da Eliane Brum,
um livro que sei que vai doer muito mais, porque é a dissolução da Amazônia que
está lá e não o urso russo, a proximidade de casa ainda conta, o que talvez
seja errado. Já de cara ela trata de metamorfose, de outro tipo aqui, diferente
da Coccia, talvez mais próxima daquela da escritora falando da Rússia. A de Eliane
fala sobre da mulher espremida entre uma vida da cidade e outra vida na Amazônia.
Ela nos fala da presença do corpo, de como nosso corpo urbanoide adoece com o
contato com essa outra vida, não sabe o que fazer com o que desperta. Só li o
primeiro capítulo, sei que também aqui não vai dar para correr, não pela
dificuldade dessa vez, mas pela realidade de estarmos caminhando para uma morte
sem transformação, sem vir a ser, como diz ela. Nós somos intrinsecamente a
destruição, anjos exterminadores criados por Tânatos sem capacidade de
remissão?
Estamos a um dia do começo da Conferência das partes sobre mudança
climática, por todo canto há artigos falando sobre algum aspecto da encrenca em
que estamos metidos. Até o Boris Johnson, não exatamente a pessoa mais progressista
do planeta, reconhece que se falharmos, haverá ainda mais migrações pelo mundo
e um aumento na competição por comida e água. Até aí, nada que não saibamos. Acordo
cedo, fico com preguiça de levantar e leio um artigo do George Monbiot no
Guardian: Capitalism is killing the planet. Ele nunca pega leve, é
sempre aflitivo porque faz sentido embora eu não saiba o que fazer com o
sentido que faz. A questão para ele é: esqueçam essa história de crescimento econômico,
não há mais como crescer, não há mais planeta para isso. A grande questão é de
distribuição, como distribuir a riqueza que já existe e que está indecentemente
concentrada nas mãos de poucos. Não há planeta sustentável com riquezas como as
dos Musks, Gates e Bezos da vida. Não se trata de eliminar o canudo de
plástico, não é uma questão de indivíduo, eu e você não somos os grandes
poluidores. A destruição acontece em como produzimos, o que produzimos, o que
consumimos e como acumulamos. Enquanto enriquecer for uma meta, não há planeta
para todos. É radical não? Quantos conseguem se enxergar abrindo inteiramente
mão dessa possibilidade? Lembrei de uma noite estranha, há alguns anos. Estava
em Frankfurt, voltava para a casa com C., amiga de uma amiga que me hospedava. Havíamos
tomado vinho com R., minha amiga, e conversávamos cruzando a ponte para o outro
lado do rio, meia-noite talvez. Dois rapazes nos ouviram falando em português e
vieram conversar. Também brasileiros, queriam dicas do que fazer na cidade. C.
trabalhava com eventos, conhecia super bem a noite, e nos levou para um bar
secreto, o lugar mais escuro que já vi. Pedimos coquetéis e conversamos um monte.
Os dois rapazes eram da região sul do Brasil, de classe média alta, com
dinheiro a rodo. Quando um deles ouviu a primeira menção à necessidade de ter
menos, diminuir o consumo, ficou furioso. Para ele, a Europa já estava com os bolsos
cheios, digamos assim, e agora queria impedir que os outros fizessem o mesmo. A
impermeabilidade dele à ideia da destruição ambiental foi das poucas coisas que
guardei do papo. Monbiot, vai se difícil a gente se acertar com isso.
Volto para outro livro com a presença da natureza, esse uma ficção: Canto
eu e a montanha dança, de Irene Solà, escritora catalã. O livro conta histórias
que se passam na tal montanha na fronteira com a França. A cada capítulo, um
narrador diferente, humanos e não humanos, vivos e mortos. Um deles é narrado
pela própria montanha, contando como é erguer-se. Acontecem histórias duras mas
tudo é contado como vida, como parte do que significa existir. Não se buscam
culpas, a capacidade de perdão e de seguir em frente é assustadora. Os humanos
se misturam aos animais e às coisas que são a existência física do planeta,
tudo uma coisa só. Acho que Solà entenderia completamente Coccia e suas Metamorfoses.
Leio tudo isso e me dou conta de que nessa semana comprei uma planta,
replantei outra, assisti vídeos buscando descobrir como salvar minha orquídea tristinha
que é tão diferente que não sei de que espécie é, a Phalaenopsis ao lado
florida há meses. Quando estive doente, um dos sonhos mais poderosos que tive
foi com jardim. Temos esses arquétipos não? Árvores da vida e jardins do Éden
devem ter algo a nos dizer.
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