Caio F.

 

Acordo, tomo café com um maravilhoso pão de abóbora, sinto um certa culpa pela gula. Ainda um tanto de louça na pia desde ontem, roupa no varal de quinta-feira. Coloco o último episódio do podcast Peixe voador na caixinha e vou fazer as tarefas domésticas. Patrícia Palumbo lê textos pedidos pelos ouvintes, Ana Cristina César, Ferreira Gullar, Borges, Fernanda Takai lendo Drummond. No meio de tudo, ela lê duas cartas de Caio Fernando Abreu que são pequenas maravilhas, em uma delas ele fala de Amsterdã, na outra conta ter descoberto ser hiv positivo. A de Amsterdã é luminosa, a outra pura coragem. Ele fala sobre a beleza da vida, algo que desconfio que todo mundo que já teve algo grave sente com muita força. Ouvi-lo é entender a expressão bonito de doer.

Saio para resolver coisas na rua, fazer compras. De volta a casa, abro uma cerveja, uma amiga liga, conversamos por mais de uma hora enquanto pego uma salada boa e almoço. Ela me conta do crescimento dos casos de covid-19 na Alemanha, eu conto que tenho encontrado amigos enquanto seu ômicron não vem. Falamos de possíveis viagens, essa coisa tão boa para planejar e botar esperança no peito da gente. Que tal o Butão? Talvez a Sicília? Gostaria de conhecer o Marrocos um dia. Quando enfim desligamos, vou para minha estante, procurar o volume das Cartas de Caio F. que ganhei de uma das minhas irmãs há muito tempo e que não releio há muito. Enquanto a gata mia pedindo colo e carinho, explico para ela que preciso de um livro. Fuço um pouco, não sei mentalmente onde ele está mas termino por vê-lo, em uma das fileiras de trás de uma prateleira. Falo sempre que preciso doar a maior parte dos meus livros, mas como fazê-lo se volta e meia encontro coisas que adoro e que ficaram esquecidas por um tempo, esperando a necessidade desses textos amadurecer e voltar, como pêssegos e cerejas de verão. É a vantagem de ter uma biblioteca, a gente redescobre coisas.

Na primeira carta, ele fala com o pai, o chama de senhor. É uma carta profundamente amorosa, preocupada com o desânimo que ele enxerga no pai e na mãe e convidando-os para vir passar um tempo com ele. As cartas seguintes são para amigas e amigos, ele fala de livros, da rotina, de trabalho. No início ele trabalha na Abril, um ano antes de eu também trabalhar lá. Depois vai para a Leia Livros, onde meu ex-marido trabalhou alguns anos depois. Volta para casa e circula pela rua dos Pinheiros, a um quarteirão e meio de onde moro. É como uma camada de tempo ligeiramente anterior à minha, eu transitaria pelos mesmos lugares pouco tempo depois.

Adoro cartas, adoro o afeto transbordante que as pessoas deixavam atravessá-las. Nada de bjs ou abs e sim “Me dá notícias qualquer hora, de repente. Te gosto sempre. Muito carinho. Um beijo do Caio Fernando Abreu”. Ou “Te quero imensamente, meu coração bate forte”.  Há alguns meses ouvi alguém ler uma carta do José Saramago para o Jorge Amado. O escritor do texto seco quase pedra derrama-se em manifestações de carinho e amizade, como hoje em dia desconfio que teríamos vergonha de escrever até mesmo para o amor da vida, por medo de parecer pegajoso e carente. Mas faz falta não faz? É bom demais. Experimentem.

Comentários