Igreja matriz

 


    Saio de casa com a lista de compras na bolsa, ainda faltam algumas coisas para o jantar de ano novo. Passo na padaria do moço francês e compro um pão multigrãos e um de abóbora com melado. Como sempre que estou em São Sebastião busco ver o mar o máximo que posso, ando até a rua da praia e me sento a olhar as águas, os petroleiros e a ilha do outro lado do canal. Uma moça de bicicleta para ao meu lado, impermeável laranja e óculos escuros belíssimos: olha aquele moço dançando sozinho! Bem na ponta do píer flutuante, um rapaz dança energicamente, fazendo passos diferentes. A moça me conta que ele tem uma caixa de som e nós duas falamos dessas pessoas surpreendentes capazes de alegria mesmo quando estão sós. Há dois petroleiros atracados, um pintado de um jeito bem tradicional, como eram na minha infância, de um tom quase preto como um mar tempestuosos, o outro de uma cor que nunca vi em um navio, laranja forte como o sol refletido na Saara. 

    Com o olhar alimentado de água, começo a andar de volta para casa, ainda falta passar no supermercado. Vejo que a igreja está aberta e entro. Dois rapazes varrem o interior, me chama a atenção porque é primeira vez que vejo homens cuidando de uma igreja. Num altar lateral, um homem está sentado, aplicando ouro na madeira, num trecho onde ela caiu. Não resisto e pergunto, você usa algum tipo de cola para fixar a folha? É mais um verniz, me explica ele, que age como um mordente quando aplicado na madeira. Ele liberta um quadrado bem pequeno de folha de ouro de um papel e aplica com um pincel macio na madeira, alisando bem suavemente para não deixar bolhas ou rugas. Conversamos um pouco, não sei por que falamos de canoas, ele me conta de uma viagem ao Bonete, atrás da ilha, uma experiência que misturou medo e beleza, e da vez que entrou na mata com um grupo para escolher uma árvore para fazer uma. Os antigos ainda sabem fazer canoas, os mais jovens não sabem mais, me conta. Quanto tempo demora para ela ficar pronta? Alguns meses, me diz ele, e depois de pronta, é preciso descer a canoa do meio da mata até o mar. O pai de uma amiga de infância tinha uma dessas, é das melhores coisas seu deslizar de absoluto silêncio. Nos despedimos, estou sorrindo, penso que a vida é bem melhor quando driblamos os algoritmos que tentam nos dar mais do que já conhecemos. (Um 2023 sensacional, para todos nós).

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