São Sebastião antes e depois da chuva

 


Cheguei para morar em São Sebastião com cinco meses de idade, minhas duas irmãs nasceram lá. Meus pais haviam ido trabalhar como médicos na cidade que na época nem hospital tinha. Saí adolescente e sempre voltei. Na minha família é quase tradição passar parte de janeiro na casa que temos. Já repeti o ritual de tantas maneiras que é impossível lembrar de todas: com amigos, com namorado, casada, com filho, com sobrinhas/o, as irmãs juntas, separadas, a casa lotada com gente dormindo no chão da sala, eu sozinha no meio de um mês de outubro qualquer. Guaecá é nossa praia, onde costumamos encontrar um bando de primas e primos do coração, seus filhos e filhas. Às vezes combinamos algo para mais tarde, às vezes ficamos conversando na praia até anoitecer, é a coisa mais linda quando tem lua cheia. Vou a outras praias também, tomei um caldo homérico em Toque Toque Pequeno, arrastada no fundo, saí da água com a perna sangrando. A primeira vez que senti meu filho se mexer, quando estava grávida, foi deitada de bruços nas areias de Boissucanga. Acampei em Maresias algumas vezes, quando a Rio-Santos era de terra e aquilo era praticamente deserto. Havia um bar e tomávamos banho de rio. Uma vez arranjei lá um amor que subiu a serra por um tempo. Fui a Camburi almoçar no Manacá e me hospedei em Juquehy, andei de carro por praias antes do traçado da Rio-Santos estar completo, desci de ônibus para poder cruzar a pé as pontes de madeira que existiam nessa época. Criança, brinquei muito com uma prima nas areias pretas de Barequeçaba, a praia quase uma piscina deixava os pais tranquilos. Adorava ver da estrada a inclinação da areia de Santiago. Por trás de todas essas praias, sempre a Serra do Mar, e nada é tão bonito como o mar meio escondido aparecer lá embaixo por entre as árvores que descem o morro.

Nem tudo é belo, sabemos, ao longo do tempo as terras dos caiçaras foram parar nas mãos das incorporadoras, em muitos casos com uso de violência e abuso de poder. Os mais pobres, como costuma acontecer no Brasil, foram parar nas encostas inseguras. Gente que vem de fora na esperança de conseguir uma vida melhor trabalhando com qualquer coisa que envolva o turismo também costuma morar nos lugares mais perigosos. Isso faz com que alguns bairros lindos pareçam cidades fantasma quando o verão passa, os trabalhadores não têm condições de morar ali. Aí, um dia cai a chuva forte e tudo vem abaixo. Há muitos mortos, ninguém sabe quantos, o mar e as praias mostram as marcas da destruição, os morros parecem mordidos por monstros gigantescos. Penso nas pessoas queridas que ainda moram lá e tenho vontade de pegar todo mundo no colo, dizer que vai passar logo; penso nas pessoas que ainda vivem de maneira mais tradicional, nos pescadores, nos que ainda sabem fazer uma canoa, nos trabalhadores dos hotéis, das pousadas, dos restaurantes, das lojinhas, dos mercados, penso no tamanho do sofrimento concentrado no lugar que para mim é um dos mais bonitos do mundo. Primeiro porque é realmente belo mas também porque, de uma família meio nômade, São Sebastião é o mais perto que temos como o lugar que reconhecemos como nosso e há uma boniteza descomunal nisso.


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