Orquídeas, o brinco e os mortos

 


Depois do café, vou olhar os meus vasos na janela da sala - as primeiras flores da orquídea bailarina abriram na ponta da longa haste, são amarelas e minúsculas, acho que não chegam a dois centímetros. Duas phalaenopsis seguem com flores, vejo os botões da dendrobium engordarem lentamente. Minhas plantas têm crescido bem nessa primavera que começou cedo, exceto a begônia rex cuja última muda morreu. Plantinha difícil, com raízes que apodrecem com qualquer gota de água a mais. Desconfio que passaria o dia no jardim se fosse uma daquelas ladies inglesas ou uma daquelas senhoras do interior donas de quintal grande para quem as plantas são quase uma farmácia.

Como a vida não é feita só de orquídeas florescendo, vejo no site de um jornal que três médicos foram executados no Rio de Janeiro, um quarto sobreviveu com ferimentos. Quem iria executar médicos visitando a cidade para um congresso de ortopedia? Mataram as pessoas erradas? Um pouco mais tarde vejo que um deles era irmão da Samia Bonfim, deputada federal pelo PSOL, casada com outro deputado federal. Milícia, imagino eu, e lembro de onde estava e com quem quando soubemos da morte de Marielle, da horrível sensação que nos tomou e de como depois falamos e escrevemos sobre o medo. Lembro também da população morta no Guarujá e na Bahia por uma segurança pública que mata no lugar de proteger - “são todos pobres, todos quase pretos” lembram Gil e Caetano.

Uma notificação pula no celular, um norueguês venceu o Nobel, Jon Fosse, o nome parece ressoar por meio do Karl Ove Knausgard, escritor de quem gosto muito. Descubro depois que é esse mesmo o caminho da lembrança, Fosse foi professor dele e escreve em Nynorsk, o norueguês do interior, usado por aproximadamente 15% da população. Dizem que escreve como ninguém mais, o que sempre me tenta.

Na rua compro uma água de coco. Minha boca tem o que meu pai chamava de gosto de cabo de guarda-chuva por conta de remédio que estou tomando para uma gripe mal curada que me deixou com a respiração curta. Nada sério, mas ontem, durante o périplo para descobrir o que era, perdi um brinco de que gostava muito, precisei subir dez andares de escada quando voltei porque acabou a energia no prédio e tive uma reação alérgica a um dos remédios, meus olhos incharam terrivelmente, as pálpebras gordas de água. Dediquei a perda do brinco, a subida da escada e os olhos inchados aos deuses, sejam quais forem, o milenar senso do sacrifício ainda habita uma parte muito velha de mim, uma espécie de mitocôndria ancestral do inconsciente. O sacrifício é sempre de algo importante para ter sentido, agradeço pela saúde e penso que é uma troca maravilhosa.

O pesar pelos mortos segue, sei que vai virar uma tristeza incrustada por muito tempo. Falo com o amigo carioca que está fora do Brasil. A tristeza dele vem por dois lados, o do lugar onde vive, São Paulo, e o do Rio que ama, tão belo e tão mortífero. Corri para fechar a janela, a chuva cai forte agora. Minha boca pede mais água de coco, meu coração, poesia.

 

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